Os 100 pontos de um vinho

Para um produtor de classe mundial, obter 100 pontos, especialmente de críticos e publicações mais famosos, é uma fonte de enorme alegria, mais para satisfazer o ego pessoal do que pelas consequências comerciais.

 

Produtores e leitores perguntam-me por vezes quais as características que um vinho deve ter para obter 100 pontos. Responder a uma pergunta que tem a ver com o elemento numérico de uma classificação técnica exige uma resposta de índole também técnica, que vá para além de gostos e emoções.

Em primeiro lugar, não gosto dos estereótipos usados por alguns invejosos ou produtores frustrados quando apontam que os especialistas em vinhos dão mais pontos aos vinhos que gostam, como se tivessem uma tendência caprichosa ou atávica. No meu caso profissional, não tenho gostos pessoais por um território, marcas ou tipos de vinho. Se tivesse, provavelmente não estaria na profissão de crítico, cuja função é provar para os outros. Quaisquer atavismos e gostos pessoais têm que ver com a subjetividade da emoção.

Nos meus começos como abstémio, em 1975, dei prioridade à cultura sensorial sobre o prazer de beber. Sempre me caracterizei como um bebedor que consome pouco vinho, mas prova muito. Durante esses anos, considerei a prova sob uma perspetiva sensorial, como comprador profissional no meu primeiro negócio de vinhos por correspondência. Eduquei as minhas papilas gustativas sem a paixão e a excitação do trago.

Devo confessar que nasci para o vinho um pouco tarde, aos 32 anos, aprendendo a provar antes de beber e, portanto, livre de afinidades com qualquer origem ou tipo específico de vinho. Aprendi com certa rapidez a mergulhar profundamente num vinho sem ter de ingeri-lo, pois tinha consciência de que teria que “bebê-lo” para os outros como objetivo principal. Para mim, o vinho, na condição de provador, perde o interesse quando entra no estômago, porque oferece mais consequências do que prazeres.

Radiografia de um vinho excecional

O que mais valorizo num vinho, enquanto provador profissional, é a riqueza e perceptibilidade dos elementos em equilíbrio. Quando um vinho atinge a faixa de 95 a 100 pontos, deve-se à complexidade olfativa e gustativa e à riqueza de nuances proporcionada pela uva e pelo processo de elaboração.

Acima de tudo, é crucial a expressão olfativa da casta no auge da maturação aromática, ou seja, nem excessiva (fruta confitada) nem escassa (notas vegetais), momento em que se percebem as características que definem a casta dentro do estádio de frutosidade fresca. A estas nuances fundem-se as notas de carvalho que adicionam à fruta a cremosidade e a elegância de tons moderados, tostados ou fumados (quase impercetíveis), com uma subtil evocação mineral do solo selvagem rico em microrganismos — tudo, repito, em equilíbrio.

Se formos às papilas gustativas, além das características já mencionadas para o olfato, devemos adicionar as tácteis, ou seja, o volume (uma impressão agradável que preenche toda a boca), a redondez, como algo esférico, mas percebendo um quadro tânico moderado, sem pontas nem arestas se for um tinto ou, se for um branco, o trabalho inteligente das borras com a interação do carvalho, com uma estadia em barrica entre três e doze meses.

A tudo isso, devemos acrescentar a perceção do sabor, que se experimenta desde a doçura do álcool e a acidez tartárica, ambas misturando-se com os aromas de boca pela via retronasal, e, finalmente, o tempo que esse sabor permanece após o gole.

Em suma, isso é o que podemos chamar complexidade ou riqueza de nuances, de forma harmoniosa, sem que nenhuma se destaque. Mas devemos também acrescentar um aspeto oculto, misterioso e indecifrável: a personalidade. Creio que não estou a desvendar nada que não seja percebido pelos colegas que se dedicam a estas áreas.

Na medida em que tais características são perceptíveis para além de quaisquer considerações mentais, emocionais, de hábitos e atavismos, a qualidade de um vinho com 100 pontos não é superior à de um com 95; simplesmente, devemos saber como descobrir, nessa faixa, quais elementos se apresentam aos nossos sentidos de forma mais inteligível do que em vinhos com pontuações mais baixas.

Para avaliar um vinho com a nota máxima, devemos garantir que a surpresa não seja acompanhada de emoção, que é uma reação psicofisiológica intensa e muito pessoal que, dada a ação fugaz, pode alterar a avaliação do vinho.

Esta descrição, um tanto fleumática, é resultado da convicção de que paixão, sensibilidade e emoções devem ser da responsabilidade de quem bebe, não do crítico, pois a paixão e a emoção do prescritor nada têm a ver com as de quem compra uma marca.

Quando eu próprio bebo um vinho, partilhando-o alegremente com amigos em casa ou num restaurante, consigo sentir a emoção do momento, o ambiente e as pessoas que me acompanham, mas isso torna-me mais indulgente na apreciação do vinho e, portanto, nem sonharia avaliá-lo como profissional. Se notasse elementos únicos no copo, compraria aquela marca para avaliá-la em momento oportuno.

Os vinhos excecionais variam entre 95 e 100 pontos. As diferenças entre as duas valorações são percetíveis apenas para provadores experientes em provas comparativas e menos para consumidores ou mesmo aficionados. É aí que emerge o génio do enólogo, que vai além da condição profissional; é o talento de aproveitar a natureza melhor do que os demais. É um vinho que nasce de um desenho pessoal. O resultado é um vinho complexo, cujas nuances são dificilmente explicáveis — vinhos que se apreciam melhor sem a distração dos pratos, vinhos para pensar e saborear lentamente.

O impacto dos 100 pontos

Para um produtor de classe mundial, obter 100 pontos para um vinho, especialmente de críticos e publicações mais famosos como Wine Advocate, James Suckling, Wine Spectator, Tim Atkin ou Jancis Robinson (20/20), é uma fonte de enorme alegria — mais para satisfazer o ego pessoal do que pelas consequências comerciais.

Diz-se que essa avaliação é capaz de esgotar o stock daquela marca, quando, na realidade, a produção costuma ser a mais escassa devido à singularidade enológica. Portanto, o impacto económico na adega é consideravelmente menor do que a satisfação pessoal de obter a classificação máxima.

O principal objetivo do enólogo é garantir que o prestígio dos 100 pontos atribuídos a esse vinho raro seja um motor para outras marcas com classificações mais baixas, mas com maior produção.

Em mais de uma ocasião, no decurso de uma conversa intimista com algum produtor ou enólogo, ele ou ela confessaram-me o quanto ficaram surpreendidos com os 100 pontos atribuídos a um vinho produzido por si quando, segundo o seu juízo, tinham outro vinho ou colheita que consideravam melhor.

Outro fenómeno que ocorre, pelo menos com os produtores espanhóis, é que os mais relutantes em enviar amostras para os guias são aqueles que, paradoxalmente, obtêm pontuações altas. Isso deve-se ao receio de que a próxima colheita daquele vinho receba uma pontuação menor. O impacto de obter um ponto a menos em 100 é quase uma desgraça.

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