Para lá da subregião, o lugar

Para satisfazer a sede de conhecimento e, assim, aumentar a valorização de cada vinho, será necessário ir muito mais fundo do que a generalidade das sub-regiões de cada denominação de origem. Não vejo isso como o ligar de um complicómetro, antes como uma importante ferramenta de valorização do produto e do terroir.

 

Escrevo esta crónica em plena noite eleitoral autárquica, com a televisão em fundo a apontar projeções e a mostrar os primeiros resultados oficiais. Não vou realizar qualquer análise de foro político, mas como cidadão fico imensamente feliz pela campanha ter terminado. Por momentos, nas últimas semanas ainda pensei viver nas décadas de 80 ou de 90 do século passado, tal o folclore generalizado a que assisti. À hora dos telejornais, era ver o resumo do dia – candidatos desdobrados em arruadas e visitas a feiras, com e sem máscara, sem que os despojos da pandemia os fizessem esquecer o beijinho e o abracinho da praxe. Para espanto meu, que julguei viver em 2021, ainda se oferecem esferográficas e merchandising afim. Mas, o que mais me chocou foi ver carros, carrinhas e autocarros a varrer ruas e avenidas, com música e chamamentos sonoramente incomodativos, a ecoar mensagens indecifráveis ao ouvido comum.


Por bastante esforço que faça, por diferentes explicações que ouça , parece-me evidente que as chamadas máquinas partidárias insistem num Portugal que já não existe ou que, pelo menos, está diferente. Independentemente da interpretação individual da realidade que cada português faça, não tenho dúvidas que a esmagadora maioria não decide o sentido de voto por receber um boné, ouvir chorrilhos de promessas sobre nada e tudo ou por levar com poluição sonora mal põe um pé fora de casa. O povinho não é acéfalo, decide baseado num mínimo de conhecimento, de intuição ou de crença. Esse mesmo povinho, acreditem ou não as máquinas partidárias, está mais exigente, por um lado, e mais afastado, por outro (abstenção).
Estabelecendo um paralelismo, se a exigência para com a política e os políticos estivesse a níveis semelhantes da que praticamos diariamente enquanto consumidores teríamos certamente protagonistas mais bem preparados, partidos e movimentos partidários mais atentos. Basta, a esse propósito, atentarmos no consumidor de vinho.


Nunca como hoje os apreciadores foram tão exigentes. Os primeiros a reconhecê-lo são os produtores, os enólogos, os distribuidores, os comerciantes, os sommeliers. A permanente vontade de ir além do óbvio acentua-se com a renovação geracional de quem compra e consome vinho, que procura obter mais detalhes acerca do que está na garrafa. E no topo dessas preocupações está a origem.
Como uma fotografia, o consumidor está a motivar um zoom pormenorizado, que lhe permita satisfazer a curiosidade acerca do berço das coisas. Porque o acesso à informação é infinitamente mais fácil, saber a denominação de origem de um vinho começa a ser insuficiente, sendo por isso fundamental disponibilizar dados complementares que permitam um entendimento mais estruturado.
A geografia do lugar e a forma como esse terroir é transmitido começa a ser dos mais relevantes fatores para uma possível diferenciação. 

Um zoom para distinguir e valorizar

Durante a apresentação do novo Chryseia 2019 reencontrei Bruno Prats. Grande nome da enologia mundial, Prats liderou o Château Cos d´Estournel durante quase 30 anos e o avô fora proprietário do célebre Château Margaux. Para lá da parceria que mantém com a família Symington, através da Prats & Symington fundada em 1999, está com Paul Pontallier, Ghislain de Montgolfier e Felipe de Solminihac, na chilena Viña Aquitania, e na África do Sul, com Lowell Jooste e Hubert de Bouard de Laforest, em Anwilka / Klein Constantia, que possui a curiosidade de uma vinha histórica datada de 1685.


Após esmiuçarmos o novo Chryseia, questionei-o acerca de outros temas da atualidade, pedindo-lhe a dada altura uma análise sobre a França e a forma como os franceses passaram a entender o vinho.
“Parece-me que na França, na generalidade, as pessoas estão a beber menos. Já não consomem vinho em todas as refeições. Bebem vinho quando se estão a divertir, quando estão com os amigos, quando têm motivos para celebrar. Bebem menos mas melhor, estão cada vez mais interessados em saber onde o vinho é produzido, como é elaborado, quem fez o vinho. A abordagem tornou-se, de algum modo, mais cultural do que meramente gastronómica”, defende. 
Este “beber menos mas melhor” não é um fruto da pandemia, é uma constatação da indústria do vinho. A Covid-19 despoletou vendas em massa de vinhos até 5,00€ nos supermercados, até porque o canal Horeca encerrou. No entanto, há mercados que notaram igualmente um aumento substancial de compra de rótulos de segmento médio-alto e alto através das plataformas online. Neste último caso, as marcas consagradas saíram por cima.
Com o paulatino regresso à normalidade possível, os micro e pequenos produtores voltam a ter a oportunidade de contactar com os seus nichos de audiência. São precisamente esses consumidores os que mais informações solicitam acerca do que pensam comprar. Olhando o que já se passa noutros países, como a França ou Itália, em Portugal será inevitável saber-se comunicar o lugar, o lugar do vinho.


O Douro é uma região com particularidades muito próprias e uma diversidade de microclimas que vai muito além das três sub-regiões: Baixo Corgo, Cima Corgo, Douro Superior. Na rotulagem dos vinhos acabará por ter que surgir em plano quase tão evidente como o da grande região a discriminação do lugar: Vale do Pinhão, Vale de Mendiz, Planalto de Alijó… 
Para valorizar ainda mais os vinhos deste patamar, o Alentejo terá seriamente que repensar os DOC Alentejo e os IG Alentejano. A diversidade de solos, a maior de todo o país, as diferenças climáticas e os perfis dos vinhos obrigarão, mais cedo ou mais tarde, a estreitar a malha e colocar em foco terroirs muito mais restritos do que atuais oito sub-regiões. Acredito que esse zoom terá que ir ao encontro de origens tão diversas quanto Arraiolos, Estremoz, Serra de São Mamede, Costa Vicentina…
Perante uma plateia de leigos sobre vinhos portugueses comunicar as denominações como tendo climas de matriz atlântica (marítima), continental ou mediterrânea é simples e eficaz. Mas, para satisfazer a sede de conhecimento e, assim, aumentar a valorização de cada vinho, será necessário ir muito mais fundo do que a generalidade das sub-regiões de cada denominação de origem.


Não vejo isso como o ligar de um complicómetro, antes como uma importante ferramenta de valorização do produto e do terroir. A utilidade desta escala parece-me, aliás, muito mais interessante do que contrarrótulos redundantes ou mesmo utensílios banalizados como “Vinhas Velhas” ou “Reserva”. A longo prazo acredito também que este tipo de comunicação motivará a valorização de aldeias e lugares tantas vezes ignorados e que, tal como todos nós, há muito merecem mais do que esferográficas ou bonés de circunstância.

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