Tipicidade: bom argumento ou má desculpa?

A tipicidade de uma Denominação de Origem pode até ser uma característica comum e genérica à maioria dos vinhos aí obtidos, embora não deva ser apresentada como uma verdade insofismável ou um privilégio extra sobre os demais. Aliás, corre até o risco de provocar uma ideia errónea de padronização junto do consumidor menos atento.

 

Nos automóveis e motos de anteriores gerações, os melhores mecânicos conseguiam frequentemente adivinhar as marcas só pelo som do motor. Era um misto de bom ouvido, conhecimento e experiência acumulada durante anos, por vezes décadas de ofício. A partilha de motores entre diferentes marcas e uma nova geração de motorizações, ambientalmente mais eficaz, incluindo em emissões poluentes e de ruido, acabou por dificultar sobremaneira a tentativa, pelo que hoje não vai além de um mero exercício de adivinhação.


Um provador de vinhos tem também nestes tempos que estar particularmente atento, atualizado e tolerante. Será que uma cor esbatida, por vezes até com reflexos acobreados, indica estarmos perante um rosé ou um branco de contacto pelicular prolongado, ao estilo curtimenta ou “orange”? O rubi translúcido indicará um Pinot Noir ou será um rosé à moda antiga, a lembrar um estilo palhete?


Há uns meses, num contexto de absoluta prova cega, sem conhecimento prévio do nome ou da casta do vinho em questão, descrevi um vinho na profunda convicção que se tratava de um Sauvignon Blanc. Tinha cor verde limão, as tradicionais notas de relva cortada, espargo e algum pimento verde. Faltava-lhe o célebre “chichi de gato” – esse recorrente descritor que usamos para muitos Sauvignon mas que não pronunciamos ou escrevemos publicamente por não parecer nada abonatório (desculpem-me, portanto, estar a fazê-lo, ou melhor, a escrevê-lo) –, é certo que sim, embora a leveza, a acidez captada e o final vegetal e agradável com que finalizou correspondessem totalmente ao perfil mainstream e novo mundista da casta. No momento da descodificação, eis o espanto ao perceber que tinha errado redondamente – o vinho era de uma variedade autóctone bem portuguesa.


A mais respeitada crítica do mundo, Jancis Robinson, reconhece que teria sido nestes dias muito mais desafiante obter o título de Master of Wine. Publicamente, por mais de uma ocasião reconheceu ser necessário na atualidade um trabalho insano de estudo para acompanhar a velocidade de tendências e surgimento de novas microrregiões, produtores, movimentos do setor em diferentes níveis. Jancis, recorde-se, foi a primeira mulher fora da indústria do vinho a alcançar esse título, em 1984.
O mundo mudou e o vinho não é exceção. O ritmo alucinante a que vivemos, a transmissão acessível de conhecimento e a facilidade de viajar para experimentar o que há de novo – na viticultura, na enologia, na divulgação e comunicação do vinho – provoca com que tudo seja muito mais rápido. Daí ter dificuldade em interpretar a justiça de um dos chavões usados para apresentar ou caracterizar um vinho, a tipicidade.

Padronização, estilo, terroir?...

Sobre Bordéus, aprendemos que na margem esquerda do Gironde o lote de castas é a prática dominante, com o Cabernet Sauvignon a assumir-se locomotiva. Na margem direita, o Merlot é rei. Na Borgonha sempre nos garantiram que o Chardonnay de Chablis é verdadeiramente especial, tal como de Itália os vinhos de Barolo serão o suprassumo. O Pinot Noir de Oregon é a valer para muitos, tal como nada se comparará ao Zinfandel da África do Sul para tantos outros. Os absolutismos, já o sabemos, são sempre discutíveis.


Por cá crescemos a ouvir que o Vinho Verde tem que ter carbónico evidente para ser verdadeiramente típico, que só o Alvarinho consegue envelhecer bem ou que o Loureiro é apenas uma casta aromática e de perfil fresco. No Vinho do Porto insistem que um Vintage tem que ser indomável na juventude, apresentar taninos quase excessivos e um músculo ao nível do Incrível Hulk. Sem recorrer aos heróis da Marvel, na Bairrada argumentam que os bons Baga terão que ser imbebíveis na primeira infância para se tornarem grandes vinhos década e meia volvida. No Dão, asseguram que o Encruzado tem que passar as passas do Algarve entre o segundo e o terceiro ano de vida para se fazer vinho digno de registo. Os exemplos continuariam a ser possíveis em qualquer outra região do país, mas o meu foco está nos méritos e nos perigos da expressão “tipicidade”.
Já provou os grandes vinhos da casta Loureiro que estão a ser elaborados? Um Vinho do Porto Vintage que dê prazer no imediato poderá desafiar o tempo se tiver estrutura, boa aguardante e acidez geral equilibrada? Novas interpretações da Baga, que resultam em vinhos muito finos e deliciosos, beliscam o que se pensa da casta ou contribuem para um novo pensamento, mais positivo, sobre ela? O Encruzado precisa ficar abafado pela barrica nos primeiros anos de vida ou uma presença menos notória da madeira só o irá beneficiar desde o primeiro momento?


Encontrar num vinho de Lisboa algum salino e frescura atlântica não só é natural como poderá ser apresentado como tipicidade. Captar um certo estilo oxidativo no Antão Vaz alentejano, sim, pode ser tido como traço de alguma tipicidade, devendo mesmo ser valorizada. Mas, afinal, o que é a tipicidade de um vinho?
A tipicidade de uma Denominação de Origem pode até ser uma característica comum e genérica à maioria dos vinhos aí obtidos, embora não deva ser apresentada como uma verdade insofismável ou um privilégio extra sobre os demais. Aliás, corre até o risco de provocar uma ideia errónea de padronização junto do consumidor menos atento, que a partir dela poderá ficar intolerante ou desconfiado perante o que seja diferente. E em circunstância alguma a tipicidade poderá ser um argumento para justificar a ausência de padrões de qualidade.


Esta era, a tal da velocidade da luz, reclama mais do que nunca pela diferenciação. Para o consumidor mais atento e predisposto à experimentação, acima de uma qualquer ideia de tipicidade regional há o estilo criado por um determinado produtor ou enólogo, a descoberta do que seja novo e tenha qualidade, que o obrigue a sair da zona de conforto. O fenómeno é mundial e começa, aos poucos, a ter repercussões no nosso país.
Implicará esse entendimento o fim de balizas de regulamentação? Claro que não, apenas uma reflexão coletiva que, estou certo, acontecerá mais cedo ou mais tarde.


Um vinho sujeito a validação de uma câmara de provadores de uma Comissão Vitivinícola Regional deve ser chumbado por não ter determinados preceitos de cor? Bom, se assim fosse, talvez nenhum vinho tinto dos anos 60 ou 70 do século passado, que hoje tanto exaltamos, conseguiria passar com distinção no crivo.


Mais do que conceitos genéricos, o presente obriga-nos a detalhar o “terroir”. A tal tipicidade que pode ser exposta num contrarrótulo de uma garrafa de vinho implica explicar o porquê de ser dele, muito para lá, portanto, do que sempre ouvimos apregoar, do que vem escrito nos manuais. E sempre que um vinho tiver um defeito notório sejamos sinceros a identificá-lo, não o tapemos com o manto piedoso da tipicidade. De igual modo, admitamos a imprecisão do termo, porque há muito que o vinho, citando a música de Tom Jobim, deixou de ser samba de uma nota só.
 

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