É contra o espírito de uma vinificação artesanal e natural que alguém veja estes vinhos como uma forma de ganhar dinheiro, e não como algo para beber e apreciar.
Recentemente recebi um grupo de colegas que veio gravar alguns episódios de podcast e um deles comprou um vinho para provarmos. Era um Jura branco, feito naturalmente, sem adição de sulfitos, e que se tornou um vinho de culto. Feito em pequenas quantidades e muito procurado, o mercado secundário deste vinho levou-o a preços exorbitantes.
O vinho era o Sonorité du Vent 2019 do Domaine des Miroirs. É feito por Kenjiro Kagami, que possui apenas três hectares de vinhas na região de Grusse, no Jura. Kenjiro vende o vinho a um preço razoável e é colocado no retalho no Reino Unido pelo importador a £60 (há alguns anos era apenas £30). É avidamente adquirido e a forma como os restaurantes e retalhistas se comportam difere marcadamente.
Um restaurante de Londres vende-o por umas bastante razoáveis £150 na lista. Mas alguns retalhistas repararam por quanto é vendido no mercado secundário e precificam-no em mais de £1.000. E justificam-no dizendo que, se este é o preço de mercado do vinho, então por que não cobrá-lo? Mas parece muito errado que alguém que não seja o produtor obtenha esta margem enorme.
Bebemos o vinho e apreciamo-lo, mas a nossa conclusão sobre esse preço louco foi que nenhum vinho vale £1.000 - e suspeito que Kenjiro esteja desconfortável com o frenesim do mercado secundário por causa dos seus vinhos, que o próprio vende a preços muito razoáveis.
É quase contra o espírito deste tipo de vinificação artesanal e natural que alguém veja estes vinhos como uma forma de ganhar dinheiro, e não como algo para beber e apreciar. Se Kenjiro está a ser decente com os clientes ao vender bem abaixo do valor de mercado, então há uma espécie de obrigação moral para que não se abuse dessa boa vontade - e beber o vinho -, ou vendê-lo a alguém que realmente apreciará a oportunidade de provar o vinho, ao invés de alguém que quer ganhar muito dinheiro com a garrafa.
Este Miroirs é um exemplo de unicórnio. Mas não são apenas estes que alcançam preços elevados.
Também temos os vinhos ícones - e estes são bastante diferentes. O status e, portanto, a escassez e o alto preço dos vinhos ditos unicórnios são geralmente determinados por quem os compra. Para os vinhos ícones, os preços elevados são quase sempre impulsionados pelo produtor. Os vinhos ícone são intencionais,
não acidentais.
Vamos considerar alguns exemplos. Champagne é uma região onde os vinhos de primeira linha são deliberadamente muito caros. Cada casa tem um ícone na gama e algumas casas são produtoras de ícones independentes. Um bom exemplo é Dom Pérignon Não é feito em pequenas quantidades, mas é vendido como um produto de luxo.
A garrafa e o rótulo são diferenciados, para que todos possam ver o que estamos a beber ao comprar este champanhe caro. Também tem um sabor caro: um vinho acessível, mas com complexidade suficiente e alguns sabores ricos e tostados que o tornam atraente para consumidores com pouco envolvimento, bem como para apreciadores de vinho.
Outro ícone que vale a pena discutir é Penfolds Grange. No início da década de 1990, ainda podíamos comprar este vinho a um preço bastante acessível e era uma aposta segura para guarda. Feito pela primeira vez em 1951 e lançado comercialmente com o vinho do ano seguinte, Grange é uma mistura multirregional e talvez o vinho mais famoso da Austrália.
A partir de meados da década de 1990, os proprietários desta marca decidiram reposicioná-la como um vinho ícone e o preço subiu dramaticamente. Agora este vinho opera no mercado de bens de luxo. É muito bom, mas tal como acontece com a Dom Pérignon, as pessoas não compram estes vinhos porque ficam entusiasmadas com as suas nuances de sabor; em vez disso, o interesse é que a marca seja prestigiada e famosa. O vinho é muito bom, mas essa é uma questão secundária quando o tema são vinhos icónicos.
Napa Valley tem alguns vinhos ícones, dos quais os três mais famosos são Screaming Eagle, Harlan Estate e Opus One. Este último, em particular, é um excelente exemplo de uma grande empresa que posiciona o seu produto de topo como um vinho ícone. É famoso e conhecido, e tem um gosto caro, mas para alguém como eu, um ‘geek’ do vinho, não é algo que particularmente procuraria ou veneraria.
Em Itália temos os Super Toscanos, com Sassicaia e Tignanello na liderança em termos de visibilidade de ícones. Em Bordéus temos os primeiros vinhos, exemplares icónicos que há 150 anos são celebrados como os melhores da região. Sucesso gera sucesso e agora estes vinhos, produzidos em quantidades razoáveis, estão acima de qualquer crítica. É claro que os críticos provam-nos, mas as suas pontuações são sempre bastante semelhantes, oscilando em torno do topo da escala de 100 pontos. Ninguém prova estes vinhos às cegas nos ‘primeurs’ – é preciso marcar uma consulta e fazer uma visita para provar, o que elimina a possibilidade de uma pontuação embaraçosamente baixa. Talvez não sejam ícones intencionais, dada a sua longa história, mas um outro vinho de Bordéus muito falado, é. Trata-se do Liber Pater que Loïc Pasquet lançou em 2019 pelo preço bastante impressionante de 30.000€ por garrafa. Isso colocou Pasquet no mapa e a narrativa de que está a recriar o sabor do antigo Bordeaux é intrigante.
Portugal viu surgir alguns vinhos icónicos, sendo o mais famoso o Barca Velha que, tal como o Penfolds Grange, foi produzido pela primeira vez no início dos anos 1950. O seu longo historial tornou-o muito procurado pelo que os preços refletem a procura genuína e não uma medida ousada por parte do produtor.
Este caso é como os primeiros Bordéus por ser um ícone mais tradicional. Um grande exemplo de ícone moderno é o vinho Júpiter, da Herdade do Rocim, que fez sucesso ao ser vendido por 1000€ a garrafa, sem histórico. O seu sucesso permitiu à Rocim comprar algumas vinhas na região do Dão. Cláudio Martins trabalhou com a Rocim para fazer este vinho como o primeiro de uma série de ‘Vinhos de Outro Mundo’.
Desde então, mais dois vinhos com nomes de planeta foram lançados, do Priorat e do Mosel. O Saturno, de Priorat, custa 1.700 euros, enquanto o Uranus, do Mosel, é uma pechincha relativa de 900 euros.
Temos aqui a distinção entre ícones e unicórnios, embora ambos sejam bastante caros. O ícone é premeditado: o produtor vai ao mercado com algo que acredita ser digno de nota e de altíssima qualidade, e fixa um preço alto. Com o unicórnio, o mercado decide que um vinho de pequena produção é realmente incrível e então todos tentam adquiri-lo. O aumento da procura resultante eleva o preço, por vezes até a níveis bizarros. No ecossistema do vinho há espaço para ambos os tipos de vinho. Os unicórnios vão e vêm e oferecem alguma intriga aos ‘geeks’.
E os ícones são o reflexo de que algo que os ricos gostam de fazer com o seu dinheiro e, por isso, acrescentam algum apelo de estrela do rock ao mundo do vinho, mesmo que não sejam aquilo que poderá interessar os geeks do vinho.