Vinhas enxertadas vs. vinhas em pé-franco

Nada sustenta que as vinhas em pé-franco, ou seja, não enxertadas sobre porta-enxertos americanos, sejam de alguma forma melhores do que as cepas enxertadas, ou que, se uma videira for enxertada, algo se perdeu.

 

Há uma nova organização no mundo dos vinhos de topo. Visto à distância, parece um clube de elite, dada a lista de vários dos grandes e bons do mundo do vinho. Chamada 'Les Francs de Pied', esta organização de produtores reúne aqueles que trabalham com vinhas não enxertadas, embora com uma ressalva: até agora, os seus membros são apenas europeus. E o presidente também gera alguma controvérsia. Loïc Pasquet é responsável pelo bordalês Liber Pater e ascendeu aos escaparates ao lançar os vinhos pelo preço inebriante de 30.000€ cada garrafa. Outros membros incluem Nicolas Maillart, Thibault Liger-Belair, Philippe Charlopin, Kostis Dalamaras, Paris Sigalas, Egon Müller, Katharina Prüm e António Capaldo.
Até agora, tudo isto parece bastante interessante. Nada de errado com produtores de topo, que ainda preservam algumas vinhas não enxertadas, quererem reunir-se ao jantar e partilhar histórias. Onde tudo se torna menos óbvio é quando surgem afirmações sobre as vinhas em pé-franco, ou seja, não enxertadas sobre um porta-enxertos americanos, serem de alguma forma melhores do que as cepas enxertadas, bem como a sugestão de que, se uma videira for enxertada, algo se perdeu. Não me parece ser um método científico de abordar a questão.


Antes de finais do século XIX, nenhuma vinha era enxertada, embora a enxertia de árvores de fruto seja uma técnica antiga. Simplesmente não havia necessidade para tal. E as vinhas teriam uma aparência bem diferente das atuais. Se fosse necessária uma nova vinha, bastava colocar a planta no solo, ou enterrar parte de uma vara, mantendo-a ligada à vinha-mãe, num processo denominado mergulhia. As densidades elevadas de plantio eram comuns e não eram requeridas entrelinhas limpas, com largura suficiente para um trator. Plantar enfoule (vinhas colocadas aleatoriamente de forma mais ou menos igualmente espaçadas) era bastante comum.
Veio então a filoxera, exigindo o replantio de praticamente todas as vinhas em porta-enxertos resistentes. Um programa de melhoramento na época resultou em muitos cruzamentos diferentes de espécies de videiras americanas para chegar à variedade de porta-enxertos disponíveis hoje. Mais recentemente, outros cruzamentos resultaram em novos porta-enxertos, como Fercal, embora se verifique a falta de esforço na criação de novas espécies de porta-enxertos. Os porta-enxertos disponíveis foram selecionados para resistência à filoxera, facilidade de enxertia e outras características, como tolerância ao calcário, resistência à seca e maior e menor vigor.

O efeito “filtrante” da união do enxerto?

A filoxera ainda está presente nos solos de todo o mundo, com algumas exceções. Esta praga de insetos não consegue sobreviver em solos arenosos (portanto, o repositório de vinhas em Vassal [Vassal-Montpellier, centro de recolha e campo ampelográfico do Institut National de la Recherche Agronomique francês] é plantado em solos arenosos, pelo que não é necessário enxertar todas as variedades diferentes) e morre quando as vinhas são inundadas. E há alguns locais onde nunca foi introduzido (principalmente no Chile e sul da Austrália).


Durante o processo de enxertia, é feito um corte no porta-enxerto e no enxerto, e o garfo é unido com a camada cambial (logo abaixo da casca). A primeira resposta é o crescimento de muitas células indiferenciadas, chamadas calo. Em seguida, o tecido vascular forma-se em cada um dos componentes, que se juntam para dar continuidade vascular, com o floema e o xilema do porta-enxerto e do enxerto agora unidos. Um bom enxerto durará pelo menos 100 anos e manterá essa continuidade.
Alguns sugerem que as vinhas não enxertadas produzem de alguma forma vinhos mais puros, que respeitam melhor o terroir. Notam que, em comparação com as vinhas enxertadas, as vinhas não enxertadas crescem e têm um desempenho diferente. Mas essa suposição, feita talvez incorretamente, resulta da premissa que a diferença deve-se ao processo de enxertia. E, inconscientemente, até parece que algo de artificial foi feito na videira - certamente isso deve ter um efeito?, apontam. Por outro lado, a maioria dos viticultores pensa que as espécies americanas de videiras são inferiores à Vitis vinifera, por causa da qualidade da videira. A crença tácita é que, se o vinho nascido de vinhas americanas e híbridos é questionável, as raízes também não serão tão boas.
E aqui reside a confusão. Se a união do enxerto for boa, a videira terá um comportamento tão bom como uma não enxertada. Falar do efeito “filtrante” da união do enxerto é fantasia. Tudo o que a videira recebe do porta-enxerto é água e íões minerais e, se o tecido condutor estiver funcional, não afetará o conjunto. O padrão de crescimento das raízes afetará o todo e as raízes igualmente o sinalizarão, por meio hormonal, para a parte aérea da planta. Mas não há evidências de que as raízes híbridas americanas o façam melhor ou pior do que as raízes da Vitis vinifera. O que fazem, no entanto, é mostrar diferenças. É por isso que a escolha do porta-enxerto é considerada uma ferramenta de viticultura. É também por isso que se espera que os produtores vejam a diferença entre as suas vinhas enxertadas e não enxertadas, se as tiverem: terão porta-enxertos diferentes. Supor que os porta-enxertos de vinifera serão superiores é infundado.


Claro, há alguma discussão no mundo do vinho sobre a qualidade do trabalho dos viveiristas, ou da enxertia em particular – mas esta é uma questão completamente diferente. A resposta para a má enxertia não é abandonar a prática, mas enxertar melhor.
O estranho sobre as discussões mantidas até agora pelo agrupamento Les Francs de Pied é que ignoraram regiões vitivinícolas não europeias. O Chile não tem filoxera e alberga muitas dezenas de milhares de hectares de videiras não enxertadas. No entanto, embora não haja necessidade de enxertias, alguns fazem-no porque isso lhes permite usar a ferramenta vitícola do porta-enxerto. Se exisitisse uma grande vantagem para as vinhas em pé-franco em termos de qualidade do vinho, não se teriam dado ao trabalho e às despesas da enxertia. Na Argentina, mesmo com a filoxera presente, muitas vinhas não são enxertadas. O mesmo acontece no estado de Washington. A Austrália do Sul não tem filoxera e a maioria dos vinhedos também não são enxertados. A organização Les Francs de Pied está a preparar um rótulo especial para vinhas não enxertadas e procura o reconhecimento da UNESCO. Estenderão esse rótulo e reconhecimento ao Chile, Austrália e Argentina, onde muitos vinhos de videiras em pé-franco são vendidos por 10€ ou menos?


Encorajar as pessoas a plantar vinhas não enxertadas parece um pouco imprudente. A região de Marlborough, na Nova Zelândia, foi inicialmente plantada com vinhas não enxertadas na década de 1970, mas na década de 1990 todas essas vinhas tiveram que ser replantadas. No Willamette Valley, no Oregon, ainda existem alguns vinhedos não enxertados, mas estão a morrer lentamente, assim como as vinhas mais antigas em Central Otago, na Nova Zelândia.
Enquanto isso, quase todos os vinhos mais celebrados do mundo provêm de vinhas enxertadas, que apresentam excelente desempenho. É ótimo que os produtores queiram manter vivas as vinhas velhas não enxertadas, e é óptimo que tenham um clube - mas, por favor, vamos manter a ciência neste caldo.

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