Quando o vinho é também pretexto

Malta

Fotografia: Fabrice Demoulin
Joana Soutosa

Joana Soutosa

Malta é um dos países mais pequenos da Europa, com apenas 316 km² de área total, repartidos entre a ilha principal e as irmãs Gozo e Comino. Apesar da dimensão reduzida, o arquipélago tem uma enorme riqueza cultural e histórica que vai muito para além das praias de água azul turquesa.

Donavan Borg, do Turismo de Malta, sublinha que “numa única viagem de cinco dias, é possível percorrer milhares de anos de património: dos templos pré-históricos às catedrais, do legado dos Cavaleiros da Ordem Hospitalária de São João às fortalezas que marcaram as grandes batalhas do Mediterrâneo”. Essa diversidade estende-se às três ilhas: Gozo, que preserva o ambiente “mais rural e tradicional, ideal para caminhadas e turismo ativo”; Comino, um refúgio “quase intocado” com o famoso mar azul da Blue Lagoon; e Malta, onde se concentram as grandes cidades históricas como a capital, Valletta, e as “Três Cidades” — Vittoriosa (atualmente chamada Birgu), Senglea e Cospicua.

Pequena no mapa, grande em história

A história de Malta gira em torno da localização estratégica que ocupa, no cruzamento entre a Europa, África e o Médio Oriente. Por esse motivo, foi ocupada por quase todas as grandes potências do Mediterrâneo e transformada por cada uma delas até conquistar a independência, em 1964, ano em que deixou de ser uma colónia britânica. Entre os capítulos mais marcantes está o período dos Cavaleiros da Ordem de Malta, que governaram a ilha de 1530 a 1798, uma organização cristã reconhecida internacionalmente até aos dias de hoje, facilmente identificada pela cruz branca de oito pontas, símbolo que permanece associado à história e identidade maltesas.

O longo legado cristão é evidente ainda hoje, com todas as festas religiosas, procissões, feriados, igrejas, catedrais e basílicas espalhadas pelas cidades. Por outro lado, a arquitetura e a língua têm uma grande influência árabe, resultado da conquista de Malta pelos árabes que durou mais de dois séculos, desde 870 d.C. até 1091.

A cozinha maltesa é mais um reflexo desta multiculturalidade. A proximidade geográfica com a Sicília traduz-se em pratos com tomate, azeite, alho, ervas mediterrânicas e massa, como é o caso do pastel típico maltês, pastizzi (uma mistura de massa folhada e recheio de queijo ricotta ou ervilhas, semelhante às sfogliatelle italianas). O chá da tarde também é comum, assim como o te fit-tazza, um chá preto com leite condensado, herança inglesa que costuma acompanhar o pastizzi. No capítulo dos doces, a amêndoa e as tâmaras são dois dos ingredientes de eleição que ficaram no receituário desde o período da ocupação árabe.

Apesar desta diversidade, Malta preserva tradições próprias, como o coelho estufado, considerado o prato nacional.

Um dos tesouros mais discretos da ilha é o vinho. Pouco conhecido fora das fronteiras maltesas, o vinho local guarda séculos de tradição e revela um terroir único.

Markus Divinus

Zafrana Boutique Winery

Em 2025, a Markus Divinus celebra o seu 20º aniversário. A história desta adega começou quando Markus decidiu produzir vinho na garagem de casa, como um verdadeiro garagiste. O que começou por ser um hóbi ganhou outra dimensão e transformou-se numa boutique winery perto de Dingli Cliffs. Quem conta a história é Markus filho, que com apenas 17 anos já faz questão de passar o seu tempo livre na adega do pai e fala do projeto com emoção e muita maturidade.

A produção é diversificada, com dez referências diferentes, mas em pequena escala — cerca de seis mil garrafas por ano.

Entre as variedades cultivadas, destaca-se o trabalho com as duas castas autóctones maltesas: Ġellewża (tinta) e Girgentina (branca). Embora também trabalhem com variedades internacionais, a filosofia da casa é preservar e valorizar o caráter natural das uvas locais. A produção reduzida não permite exportar. O foco é o mercado interno, com presença praticamente em todos os melhores restaurantes da ilha, incluindo os distinguidos com estrela Michelin. Além da restauração, os vinhos também chegam ao consumidor final através de vendas diretas.

Quanto ao estilo, Markus sublinha a versatilidade, garantindo que “há um vinho para cada pessoa”. Um exemplo é o Zafrana, elaborado a partir da Girgentina, fresco e leve, perfeito para o verão. Em contraste, o Solum, feito exclusivamente de Syrah, revela-se um tinto encorpado e estruturado.

Todos os vinhos carregam uma simbologia. O Adon 2022, um tinto um pouco mais arrojado, é dedicado ao filho Markus (Adon é o segundo nome). Kiraz 2021 é um rosé em homenagem à esposa, Ruth, por ser a “cereja no topo do bolo” (kiraz significa cereja em turco). Há também rótulos dedicados à mãe e à avó.

Mediante reserva, é possível fazer visitas à adega com diferentes provas à escolha. Além da prova de vinhos, pode conhecer-se o laboratório de fermentação, o Barrel Room e a Wine Library, onde estão guardadas as primeiras 24 garrafas de cada referência. O espaço é pequeno, mas muito acolhedor e bem preparado para receber visitantes.

Tal-Massar Winery

A história da Tal-Massar Winery remonta a 1934. Ganhou novo fôlego há cerca de 20 anos, quando o enólogo Anthony Hili e a mulher, Marisa, decidiram recuperar o legado familiar.

Ele herdou a adega da família, ela possuía as terras em Gozo: a junção dos dois deu origem ao renascimento da propriedade e do negócio. Em 2004 foram plantadas as primeiras vinhas, em 2008 chegou a primeira vindima e, dois anos mais tarde, foi lançado o primeiro vinho.

O reconhecimento não tardou: em 2012 conquistaram a primeira medalha no "Challenge International du Vin", em Bordéus, a que se seguiram muitas outras.

Os vinhos da Tal-Massar nascem de “solos únicos e relativamente jovens”, explica Anthony. Malta e Gozo repousam sobre rochas formadas há milhões de anos no fundo do mar, o que “confere ao terroir características muito particulares: solos pobres, calcários, altamente alcalinos e ricos em minerais”. Esta especificidade traduz-se em produções muito baixas, entre um a dois quilos de uva por videira, dependendo da casta, mas também em vinhos de “personalidade marcante”.

Hili defende a arte do blend: “Da minha experiência como enólogo, é muito melhor misturar castas para fazer vinho do que utilizar apenas uma variedade”. Por isso, aqui conjugam-se variedades internacionais, como Vermentino, Chardonnay, Syrah, Sangiovese, Merlot ou Nero d’Avola, com as autóctones Girgentina e Ġellewża, e, em breve, a mais recentemente redescoberta pelo Departamento de Agricultura, Berruħa. O resultado são vinhos equilibrados, pensados para acompanhar a gastronomia local e responder ao gosto moderno, com uma produção anual de cerca de 25 mil garrafas, muito aquém da procura, que, segundo Anthony, ronda as 100 mil. A distribuição concentra-se em Malta e Gozo, tanto em hotéis como restaurantes de topo.

A particularidade da gama de vinhos da Tal-Massar, que inclui branco, tinto e rosé, é o vinho licoroso, elaborado a partir de Nero d’Avola “em anos excecionais”. O enólogo recorda a origem do projeto: “Em 2014 tivemos uma produção de Nero d’Avola acima do normal. Em vez dos habituais 1,5 quilos de uva por videira, colhemos cerca de 2,5 quilos. Decidimos então deixar as uvas mais tempo na vinha e recorrer ao processo italiano de appassimento, retirando as folhas que cobriam os cachos e expondo-os diretamente ao sol”. Em apenas dez dias, as uvas perderam metade do peso e da água, concentrando o dobro dos açúcares. A fermentação foi conduzida até os 14% de álcool, altura em que as leveduras deixaram de conseguir trabalhar. “Nesse momento adicionamos álcool vínico e elevamos o teor final para 20%”, acrescenta. Seguiu-se o estágio em tonéis de madeira da Sérvia, onde permaneceu dois anos sem qualquer batoque, perdendo cerca de 30% por evaporação. “Hoje, este vinho tem 11 anos e apresenta aromas únicos. É muito apreciado pelos malteses, sobretudo no inverno, quando existe uma grande tradição de consumir vinhos doces. Vende-se muito no Natal e acompanha bem pudim de chocolate ou fondue”.

A Tal-Massar Winery oferece visitas guiadas e provas de vinhos, idealmente sob reserva. Está a ser construído um deck de madeira com vista panorâmica que certamente vai elevar a experiência.

Ta'Betta Wine Estates

A história da Ta’Betta Wine Estates começou de forma quase casual, no início dos anos 2000, quando Juanito e Astrid Camilleri compraram uma pequena quinta pensada para ser o refúgio da família ao fim de semana. Alguns anos depois, conheceram Vicenzo Melia, o enólogo siciliano que viria a mudar o rumo da propriedade. “Eles adoraram o conceito do Vicenzo e ele disse que havia potencial para fazer vinho nesta propriedade”, recorda Diana, responsável pelas provas e eventos.

O projeto foi ganhando forma, com a importação de vinhas de França e a plantação de quatro hectares com 15 mil videiras. Hoje, a Ta’Betta trabalha exclusivamente com castas internacionais: Chardonnay nos brancos e, nos tintos, Merlot, Syrah, Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon e Mourvèdre, “variedades que se adaptam bem ao calor maltês”.

“Costumamos dizer que fazemos vinhos de grande caráter e um pouco tradicionais, obviamente, porque as vinhas vêm de França e o produtor de vinho é italiano. Temos a tradição do velho mundo. Mas os proprietários adoram viajar, por isso, o nosso estilo também tem influências do novo mundo”, explica Diana. “Usamos, por exemplo, depósitos de cimento importados de Sonoma, na Califórnia."

A produção destina-se sobretudo ao mercado maltês, em hotéis boutique, restaurantes e lojas especializadas, mas parte segue também para exportação, chegando a países como Reino Unido, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Suíça.

Além do vinho, a Ta’Betta também aposta na vertente de enoturismo, explorando a beleza natural da propriedade. “Recebemos grupos pequenos em provas privadas, mas também organizamos jantares nas vinhas, piqueniques, churrascos e até casamentos. A localização é privilegiada: temos Mdina em frente e um pôr do sol magnífico.”

De facto, há um encanto nesta propriedade. Faz lembrar um pouco Bordéus, mas também a Toscana. A receber os visitantes estão três ou quatro cães muito dóceis que se apressam a cumprimentar quem entra nos portões. A sala onde estão as cubas é ampla e guarda outro tesouro: gravuras milenares nas rochas, encontradas durante as escavações.

Malta International Wine Festival

Cumprindo o pretexto da nossa visita, seguimos caminho até ao Argotti Botanic Garden, em Floriana, próximo da capital La Valletta. Curiosamente, estes jardins foram desenhados, em 1741, como um espaço privado para o Grão-Mestre Manoel Pinto da Fonseca, o único Grão-Mestre português da Ordem de Malta. Foi oficialmente convertido em jardim botânico, em 1805, sob o Império Britânico, passando à jurisdição da Universidade de Malta. Pode não fazer parte do roteiro da maioria dos visitantes, mas vale a pena conhecer o espaço verde e a vista panorâmica.

Jonathan Pace, membro da organização do Malta International Wine Festival, explica que o evento surgiu da necessidade de colmatar a falta de interação que existia entre produtores internacionais e locais, importadores, outros especialistas e o cliente final, oferecendo uma plataforma de promoção atrativa que inclui, além do vinho, música ao vivo e comida. Também há masterclasses com sommeliers malteses e profissionais do setor, focadas em referências internacionais e algumas nacionais, reconhecendo que o mercado do país é pequeno e é importante educar os consumidores acerca da diversidade de estilos e origens, incentivando uma cultura de consumo responsável e informada.

Já na quarta edição, o festival contribui para consolidar Malta como um ponto de encontro para quem valoriza a experiência do vinho, já que, segundo Pace, perto de 90% do público presente durante a semana são turistas, enquanto ao fim de semana a situação se inverte e são maioritariamente os locais que desfrutam do evento.

Em prova estiveram mais de 300 rótulos que puderam ser provados num cenário privilegiado, com o porto de Marsamxett e um pôr do sol em tons de rosa e lilás a servir de pano de fundo. No epicentro do festival, uma banda ao vivo animou o público, enquanto na zona panorâmica esteve um DJ. A programação dos cinco dias contemplou vários artistas locais e noites temáticas com bandas tributo.

Ainda não há previsão de datas para 2026. No entanto, a Revista de Vinhos deixa-lhe um pequeno guia com muitos outros pontos de interesse em Malta, passando pelas três adegas que lhe demos a conhecer. Boa viagem e boas provas!

Dia 1

1. VALLETTA GLASS
Fundada em 1979 é um dos muitos exemplos da qualidade do trabalho artesanal maltês. É possível observar a elaboração do vidro e das peças que depois são postas à venda na loja. Candeeiros, brincos, anéis, vasos, jarras, objetos decorativos… todos únicos e feitos ali.

2. MDINA
Também conhecida como “Cidade do Silêncio” foi a primeira capital de Malta. A arquitetura medieval e barroca e as fortificações romanas que a rodeiam, tornam-na num dos pontos de visita obrigatórios.

3. MARKUS DIVINUS

Dia 2

1. BARCO PARA GOZO

2. VICTORIA (CAPITAL) - CITADELLA
Victoria foi o nome dado à capital de Gozo no ano de 1887 em honra do Jubiléu de Ouro da rainha Vitória de Inglaterra. Até então, e como muitos locais continuam a chamar, era conhecida como Rabat. A Citadella foi transformada em castelo na época medieval e usada pelos Cavaleiros da Ordem Hospitalária de São João na defesa contra os ataques otomanos. Costumava ser o lar de um terço dos habitantes da ilha, mas hoje tem uma população de menos de dez pessoas. Ainda assim, há muito para conhecer.

3. TAL-MASSAR WINERY

Dia 3

1. MARSAXLOKK
Cidade piscatória, tem um grande mercado ao domingo que vende peixe, mel, vinho e muito mais.

2. TA’BETTA WINE ESTATES

3. ĦAĠAR QIM AND MNAJDRA ARCHAEOLOGICAL PARK
Outro segredo bem guardado. Património Mundial da UNESCO, estes templos megalíticos são, provavelmente, de 3200-3600 a.C. Além do museu há dois complexos arqueológicos para visitar.

4. BLUE GROTTO