CASA SANTOS LIMA E DFJ VINHOS

Gigantes da exportação

Fotografia: Ricardo Garrido
Marc Barros

Marc Barros

Lisboa, sobretudo desde que assim passou a designar-se como Região Demarcada, parece libertar-se em definitivo de espartilhos e estigmas passados. A qualidade média dos vinhos aumentou, a produção de vinho certificado também subiu. O preço continua a ser sedutor, sobretudo na guerra internacional por lugares nas prateleiras. Juntas, a Casa Santos Lima e a DFJ Vinhos representam mais de metade da produção da região de Lisboa, dois autênticos gigantes que há muito perceberam que para atingir grande dimensão é obrigatório explorar e exportar.

 

Alenquer, Arruda, Bucelas, Carcavelos, Colares, Encostas d’Aire, Estremadura (Lisboa), Lourinhã, Óbidos e Torres Vedras. Como que de A a Z, conta-se uma dezena de denominações de origem na atual Região Demarcada de Lisboa. E mais seriam se tivesse sido concretizada a fusão, debatida em tempos, com o vizinho Tejo. Além da vizinhança, muito do que é clima e solo tem inquestionáveis semelhanças, mas cada demarcação ficou com a respetiva Comissão Vitivinícola Regional (CVR).

Colada ao Atlântico, com notória influência marítima mas zonas igualmente quebradas por serranias (Montejunto, a principal), que assim permitem traços de maior continentalidade e abrigam do vento hectares e hectares de vinhas, a região de vinhos de Lisboa espraia-se dos arredores de Leiria (a norte) às cercanias da capital portuguesa (a sul). E desse mapa constam pequenos tesouros: uma das três regiões demarcadas de produção de aguardante vínica na Europa, Lourinhã (apenas a par de Armagnac e Cognac, na França); e os vinhos raros que resistem à pressão imobiliária constante, os de Colares (com a particularidade das frágeis vinhas plantadas em chão de areia e dos encómios do imortal Eça de Queirós) e os licorosos de Carcavelos (inicialmente impulsionados pela figura tutelar do Marquês de Pombal, na atualidade preservados pela autarquia de Oeiras).

A esmagadora maioria dos vinhos elaborados neste pedaço de Portugal conheceu, todavia, uma imagem menos positiva ao longo de quase todo o século XX. Se muita aguardante serviu o setor do Vinho do Porto (antes da liberalização da compra de aguardentes fora do país), muitos milhões de litros de vinho tinham como destino único o abastecimento de tascas e tabernas da área metropolitana de Lisboa. 

Não admira, portanto, que a designação Estremadura tenha estado conotada, ao longo de décadas, a vinhos menores. O paradigma alterou-se bastante e a grande viragem, confirmada já neste século, é sublinhada em 2009, ano em que a designação Estremadura cai para receber, de braços e de marketing abertos, o nome Lisboa. Hoje, o consumidor português já se habituou à chancela “Vinhos de Lisboa” e, mais importante ainda, a promoção internacional dos vinhos da região ficou bem mais facilitada.

Entretanto, aos principais operadores da região juntou-se uma linhagem de produtores de pequena e média dimensão, que provaram ser possível ali elaborar igualmente vinhos de “boutique”, de produções contidas mas de qualidade média-alta e alta. O embalo foi geral, a crítica especializada foi ficando conquistada, mas os consumidores nacionais têm demorado tempo a aperceber-se deste renascimento. Pelo contrário, os vinhos da região dão cartas nos mercados internacionais, conquistando dezenas e dezenas de prémios em concursos de vinhos e, sobretudo, abrindo novos mercados. 

Os vinhos de Lisboa estão em grande e não apenas em bag-in-box nos países nórdicos europeus. Cada vez mais em garrafas e estilos pensados à medida para Inglaterra, Centro da Europa, América do Norte e Ásia. Uns, elaborados a partir das célebres castas francesas, outros arriscando lotes com castas portugueses, todos bastante competitivos na relação qualidade/preço. Se dúvidas houvesse, eis dois números avassaladores: Lisboa certifica atualmente cerca de 35 milhões de garrafas de vinho por ano e os principais operadores da região exportam mais de 90% da produção média anual. Detalhamos dois desses casos.

 

CASA SANTOS LIMA

Uma fatia de 40% de uma região

 

Para vender vinho no mundo, o caminho traçado por José Luís Santos Lima ficou desde logo definido. Para o mesmo patamar de preço, oferecer mais qualidade que um vinho francês, italiano ou espanhol. A postura já lhe valeu críticas mas reage a sorrir: “Estou contente assim, gosto de espalhar alegria pelo mundo inteiro a um preço acessível”.

Situemo-nos. Estamos na Quinta da Boavista, em Alenquer. Enquanto realizamos um passeio de jipe pelas vinhas, dispostas por vales suaves com Montejunto no horizonte, uma das imagens mais típicas da paisagem vitícola da região de Lisboa, José Luís Santos Lima explica-nos que a ligação à terra está relacionada com o lado materno. 

A mãe e três irmãs lá faziam seguir a quinta, à época vendendo vinho a granel. José Luís é ainda bisneto do precursor da propriedade, Joaquim Santos Lima, que em finais do século XIX era já tido como um relevante produtor e exportador de vinhos (exportava vinho em barricas, para o Brasil). Curiosamente, nenhuma das anteriores gerações deu o passo de engarrafar. 

Após 23 anos de carreira no setor da banca, que o levaram a trabalhar não apenas em Lisboa como em Paris e Londres, assumiu o desígnio de reabilitar a quinta da família. A empreitada começou em 1990, sendo que apenas em 1996 lançou no mercado o primeiro vinho engarrafado, com marca própria. Nesse hiato de meia dúzia de anos procurou inteirar-se acerca das especificidades do vinho. Questionou amigos que estavam ligados ao setor, oriundos de diversas regiões portuguesas, por vezes fazendo perguntas quase descabidas mas que o ajudaram a perceber as cambiantes do novo mundo com que se deparara. Aproveitou ainda esses verdes anos para reconverter vinhas e apostar em novos encepamentos, preparando-se para o futuro. 

Garante que assumiu uma postura de humildade, que recorreu a vários livros para tentar aumentar o conhecimento sobre vinhos, ao que acresceu a inteligência de se rodear por técnicos de viticultura e enologia. “Tinha a ousadia de fazer propostas que um leigo, que um ignorante, pode fazer porque não corre o risco de ser desacreditado. Umas até vingaram e relevaram-se positivas, passando a práticas recorrentes”, confessa.

Sem rodeios, admite que teve sorte e soube cavalgar cada oportunidade. O primeiro engarrafamento a sair do país teve como destino Inglaterra. No famoso programa televisivo “Food and Drink”, da BBC Two, os especialistas Oz Clarke e Jilly Goolden elogiaram bastante o vinho da Casa Santos Lima que haviam adquirido na prateleira de um supermercado. Qual efeito bola de neve, o vinho esgotou no dia seguinte e a notícia acabaria por chegar a Portugal. 

Nesse início que começava promissor, José Luís lembra-se ainda do investimento feito ao enviar milhares de amostras de vinhos para potenciais clientes de várias partes do mundo, sendo que de muitos nunca obteve qualquer resposta. Mas outros houve que prometeram resposta a médio prazo e alguns que gostaram… e avançaram. “É uma atividade que não é fácil, requer muita persistência”, sublinha. Ainda assim, nesses finais dos anos 90 era mais fácil. Hoje, o vinho português já não é um mero exotismo, acaba por estar presente em dezenas de mercados e a competição por um lugar num determinado posto de venda é, consequentemente, maior.

Persistente é, de resto, um adjetivo que assenta como uma luva em José Luís Santos Lima. Nos primeiros anos em que marcou presença em feiras profissionais de vinho não se limitava a ficar dentro dos limites do espaço de expositor, à espera de visitas. Ia para os corredores, observava a fisionomia dos passantes e tentando antecipar pelo nome a provável nacionalidade, lá ia convencendo uns quantos a que provassem os vinhos. A verdade é que parte da carteira de clientes internacionais que ainda hoje mantém assim foi conquistada.

Volvidos 20 anos sobre a colocação do primeiro vinho Santos Lima no mercado, a casa assumiu uma dimensão e projeção que poucos lhe poderiam adivinhar. Produção média anual de 14 milhões de garrafas, o que equivale a dizer mais de 40% do total de vinho engarrafado na Região Demarcada de Lisboa. A produção nasce a partir de 450 hectares de vinha própria, havendo muitos mais arrendados. A operação está sobretudo na zona de Alenquer mas há já vinhos elaborados no Minho, no Douro, no Alentejo e até no Algarve.

Cerca de 90% do vinho é dirigido a 50 mercados externos. A Casa Santos Lima é líder de vinhos portugueses na Escandinávia, tem presença forte na América do Norte e, a título de curiosidade, refira-se que é dos poucos produtores portugueses com vinhos na Austrália. O atual objetivo comercial em matéria de exportações passa por reforçar a presença no gigante continente asiático. Suécia, Estados Unidos, Bélgica, Noruega e Canadá são os principais mercados por estes dias, sendo que na Holanda, por exemplo, tem 17 importadores a trabalhar diferentes marcas.

Palha Canas, Lab, Cigarra, Bons Ventos, Opaco são somente algumas das mais de 100 marcas atualmente usadas, sendo que a casa registou para cima de 200. José Luís Santos Lima faz-se sempre acompanhar de um bloco de apontamentos e mesmo estando numa sala de cinema, num café ou numa viagem faz questão de anotar um potencial nome para uma potencial nova marca. Discutirá o uso desse nome à mesa do jantar, em família, e no dia seguinte, com a equipa mais próxima de colaboradores. E nesse capítulo, o da equipa, prepare-se para os números que se seguem: em 2007 eram 7; hoje são 150 funcionários permanentes. Vinte e cinco milhões de euros de volume anual de negócios.

 

DFJ VINHOS

Melhor, mais bonito, mais barato

 

Aos 67 anos, José Neiva Correia é um dos mais experimentados enólogos portugueses. É ainda, desde 1998, produtor da DFJ Vinhos, outro gigante da Região Demarcada de Lisboa, com 200 hectares de vinha própria (somando as uvas que adquire a outros viticultores, vinifica o equivalente a 500 hectares), produção média anual de 6 milhões de garrafas, mais de 40 marcas e 110 referências em diferentes mercados. Neste particular, o sublinhado que ajuda a ilustrar a vocação exportadora de Lisboa: 98% da produção da DFJ é exportada, maioritariamente para os mercados do Reino Unido, Noruega, Polónia e EUA.

José Neiva Correia nasceu em família com ligações fortes à terra. Pais, avós e trisavós faziam vinho, pelo que desde cedo esteve habituado a pisar terrenos como os da Quinta de Porto Franco, Alenquer. Mas não atribui a esses tempos demasiada importância realçando que em Portugal, há 50 anos, vigorava o pensamento que preconizava que o setor do vinho dava de comer a mais de um milhão de portugueses, ou seja, uma larga franja da população tinha ligações à área. Curiosamente, José Neiva é o único de oito irmãos a viver exclusivamente do setor. “Os comboios só passam uma vez. Eu estive na estação. Fui apanhando os comboios que achei mais convenientes e tive a sorte desses comboios me levarem aos sítios certos”, diz-nos.

Fez a primeira vindima em 1974, na Adega Cooperativa de Torres Vedras. De então para cá nunca mais parou a atividade da enologia, tendo sido consultor em vários projetos (curiosamente também na Casa Santos Lima). Afirma que a dado momento da vida terá sido enólogo de 10% do vinho português.

A empresa que agora o monopoliza é criada nos finais da década de 90, em resultado de um desafio. Era consultor da D&F Wine Shippers, à época a maior importadora de vinhos portugueses no Reino Unido, e aceitou a aventurança de uma empresa onde também fosse sócio, juntamente com os proprietários da importadora, Dino Ventura e Fausto Ferraz. As iniciais dos três sócios resultaram no nome, DFJ. Em 2005, com a morte de um dos protagonistas do projeto, opta por adquirir a totalidade do capital.

A operação está maioritariamente centrada em Alenquer e nos arredores de Santarém. No primeiro caso, na Quinta de Porto Franco, adquirida pelo bisavô a Sebastião José de Carvalho, o primeiro Visconde de Chanceleiros. Há por ali vinhas, adega e edifícios de traça agrícola tradicional. Depois, a Quinta da Portela, protegida pela Serra da Neve, o ponto mais alto de Montejunto, com uma área de vinhas de 37 hectares, onde está plantada uma diversidade de castas: Merlot, Cabernet Sauvignon, Caladoc (cruzamento de Grenache e Malbec), Syrah, Pinot Noir, Alicante Bouschet, Castelão… No segundo caso, entre o vale de Santarém e Valada, a Quinta da Fonte Bela, uma propriedade muita bonita, com uma fonte central que sobressai por entre um conjunto de edifícios que lembram a arquitetura industrial, construídos em pedra, com telhados sumptuosos e onde também se destaca uma altiva chaminé, que se avista bem à distância. Ali, António Francisco Ribeiro Ferreira, um dos principais latifundiários do século XIX, produziu aguardente vínica que era destinada a Vinho do Porto. Edifício a edifício, José Neiva Correia tem reabilitado a propriedade, conseguindo reunir condições para laboratório, sala de tonéis e de barricas, espaço para adega e depósitos, sala de visitas, armazém. Em constante transformação, ainda por ali haverá um espaço mais habilitado a ser loja e enoturismo e, nas proximidades, estão previstos outros investimentos.

A fórmula é explicada sem meias palavras por José Neiva Correia. “É preciso ir aos mercados, trazer os vinhos de maior sucesso nesses mercados, prová-los e fazer melhor, mais bonito e mais barato. A fórmula é simples”. Insiste que em matéria de disputa de posicionamento nos diferentes mercados externos será batalha perdida para os portugueses tentar disputar lugares, por exemplo, com os vinhos franceses. Não que os vinhos portugueses até possam ser equivalentes ou superiores em qualidade, mas porque nada se poderá fazer em termos de tradição e, sobretudo, de exclusividade. “Um carro japonês pode ser tão bom como um Ferrari, mas nunca conseguirá ser vendido ao mesmo preço”, observa.

O caminho que decidiu seguir tem resultado. E aos números soma medalhas. Em 2016, os vinhos DFJ obtiveram mais de 300 distinções em concursos, provas e publicações internacionais e também no histórico recorda-se, com entusiasmo, o primeiro lugar alcançado na categoria “Best Buy”, pela revista especializada norte-americana “Wine Enthusiast”.

Para lá do que já por aqui se deu nota, a DFJ tem ainda vinhos do Douro, Península de Setúbal e Alentejo. Mas José Neiva Correia tem a convicção profunda que a região de vinhos de Lisboa terá um futuro ainda mais risonho, tirando proveito do atual ciclo climático quente. A temperatura média anual diurna aumentou claramente, permitindo uma maturação mais condizente das uvas. A influência atlântica permanece e sente-se sobretudo nos orvalhos noturnos, que ajudam a refrescar e evitam paragens de maturação. Afinal, como em tudo na vida, o vinho é também (e muito) uma questão de equilíbrio.

 

Assista aqui ao programa A Essência - RTP 3 sobre a Casa Santos Lima.