Do festim da quantidade ao exclusivo do perfume

Fotografia: Fotos D.R.
Manuel Moreira

Manuel Moreira

A região do Tejo carrega uma certa ideia, ainda na mente de muitos, de volume indiscriminado, da primazia à quantidade em desfavor da qualidade. Uma casta personificava a noção de "cavalo de batalha" ou de "paga-dívidas", usada para descrever produções desmesuradas. Essa casta é a Fernão Pires. Na dinâmica crescente de evolução qualitativa da região e do vinho português, terá a Fernão Pires uma palavra a dizer?

 

Sendo a casta mais expressiva da Região Vitivinícola do Tejo, decidiu a respetiva Comissão Regional dar a conhecer a Fernão Pires. Luís de Castro e João Silvestre, Presidente e Diretor-Geral, respetivamente, receberam-nos na Casa Museu Passos Canavarro, em Santarém, local altano que confere vista privilegiada a contemplar a vastidão da planície que define boa parte da região, em comunhão com o rio Tejo. 


Entre os principais terroirs para a produção de vinho distinguem-se o Campo, que responde também por “Lezíria do Tejo”, ladeando as margens do rio, frequentemente afetada pelas inundações das águas do Tejo e elevada fertilidade do solo das extensas planícies circundantes. Aqui domina a produção de vinho branco, de natural preponderância da Fernão Pires, que representa 60% do encepamento na região. A Sul do Tejo, na margem esquerda, apresenta-se outro terroir, a Charneca. De solos arenosos, menos férteis, com boa drenagem, está associado a temperaturas mais elevadas do que nas outras duas zonas da região, que aceleram a maturação da uva, permitindo o amadurecimento de uvas tintas. Por aqui a Fernão Pires, já “só” representa 30% do total da região. O terceiro e último terroir, o Bairro, tem menos expressão, em que a Fernão Pires surge com somente 10%. Na margem direita, logo após os solos férteis de aluvião, prevalecem os solos argilo-calcários (onde as montanhas são alternadas pelas planícies, com predominância da vinha e do olival) e os solos xistosos (a Norte, numa pequena área localizada perto de Tomar). É o solo preferencial para vinhos tintos.

 

A casta no copo

Passamos a assuntos de enologia, guiados por Martta Reis Simões, responsável de enologia da Quinta da Alorna e Diogo Campilho, da Quinta da Lagoalva. Estes fizeram uma seleção de vinhos da colheita de 2017, amostras de cuba e casco, portanto, mas lotes feitos, provenientes dos três terroirs. Iriam ainda apresentar vinhos envelhecidos, sendo um deles de 1983. Apodera-se a expetativa, misto de curiosidade e verdadeiro interesse. Sabíamos que a casta, pela abundância de compostos percursores do aroma (terpénicos, linalol, nerol, geraniol), é uma das mais aromáticas do país. Daí ser um regular componente de lote, contribuindo fortemente no perfil aromático global. Outra característica é o facto de não ser conhecida pela veemência da acidez. 

Se tem pouca acidez, apesar de produzir bom corpo, será que evolui bem? E de que modo?

Os primeiros três vinhos, do Campo, mostram um perfil de frescura surpreendente, obviamente bastante aromático, com os marcadores de cítricos e algum tropical a fazerem-se sentir. Provenientes de vinhas entre os 10 e os 41 anos de idade, não sendo um primor de corpo apresentam uma certa elegância, firmeza e vivacidade. Um deles, apesar do substancial (bem maior) rendimento, manteve ainda assim integridade geral. Dois exemplares do Bairro exibiram um vigor e estrutura superior, acima dos 13% de volume alcoólico mas com acidez total bem acima dos 6 gr/l. Contrastavam, contudo, no perfil aromático, com um deles enquadrado no perfil referência, mas outro num perfil mais vegetal, com imensos tiques a lembrar Sauvignon Blanc. Os quatro vinhos provenientes da Charneca, de vinhas com idades entre os 31 e os 66 anos, com rendimentos baixos (entre as quatro e oito toneladas), revelaram um excelente compromisso entre corpo e frescura. Dois dos vinhos ostentavam um equilíbrio notável, 13,5% de volume alcoólico e bem acima dos 6 gr/l de acidez total. Bem profundos, ricos e refinados. Um outro causou divergência, até surpresa, pelo perfil. Com somente 11,8% de volume, estágio de barrica, pleno de tensão, frescura e vibração. Quando trabalhada com critério, controlo de produção, a casta reflete as diferenças da localização e da interpretação de quem faz os vinhos. À questão da frescura, Diogo Campilho responde com o rendimento controlado, controlo de maturação e vindima noturna.

Já no Taberna Ó Balcão, oportunidade houve de apreciar uma outra faceta: a de vinho licoroso. Ao já conhecido Alorna Abafado 5 anos seguiu-se o inesperado Quinta da Lagoalva Abafado 1964. De pasmar a frescura arrebatadora, a riqueza de aroma e charme. Notável! Prova que a Fernão Pires, já assumidamente plástica e versátil, pode dar origem a vinhos de qualidade superior e colocá-la no potencial epicentro dos vinhos brancos da região.