Espumantes Millésime

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Quando o assunto é espumante, é França e os Champanhes que nos surgem de imediato em mente. Mas um pouco por todo o mundo fazem-se vinhos espumantes de elevadíssima qualidade, incluindo, claro está, entre nós. E os Millésimé estarão nesse campeonato?
 

textos Guilherme Corrêa dip WSET, Luís Costa e Marc Barros

A produção de vinhos espumantes em Portugal é, podemos afiançar, de qualidade notável, com exemplares que rivalizam com qualquer amostra vinda de qualquer outra parte. E nos chamados Millésimé, ou seja, espumantes produzidos com uvas de uma só colheita? O Millésimé é um vinho especial. Trata-se de um grande ano, com condições especiais de elaboração, complexidade e guarda (ver texto de Guilherme Corrêa).
Mas, produzir vinhos espumantes de uma colheita apenas, de altíssima qualidade e, como tal, dispendiosos, será contraproducente, num mercado que ainda encara esta categoria como de consumo sazonal ou, exceção seja feita, em momentos especiais de celebração? Tentar remar contra a maré do mercado, apresentar os espumantes como vinhos versáteis, que se adaptam a qualquer momento de prova, seja à mesa, seja como aperitivo, seja apenas porque sim, pode ser tarefa inglória, quando aos espumantes está remetido o papel de brinde e festividade.


A prova temática desta edição da Revista de Vinhos pretende contribuir para quebrar os dogmas e estigmas. Desde logo, nunca será demais repetir, à semelhança do que se verifica em todas as categorias de vinhos, atualmente produzem-se espumantes de qualidade em todo o país vinícola. Ou seja, os dias em que os espumantes estavam confinados à Bairrada ou a Távora-Varosa, para além de um ou outro exemplar disperso, chegaram ao fim. Não significa que não continuem a fazer-se grandíssimos espumantes nestas duas regiões. Mas também os fazem nos Verdes, no Douro, no Dão, Lisboa ou Alentejo.

Na Bairrada e Távora-Varosa

Mas, nas regiões tradicionais de espumantes, também se assiste a uma renovação. Veja-se a Bairrada que, com o seu projeto Baga Bairrada, abriu um leque de oportunidades aos produtores da região, com um produto distinto e regras próprias, tendentes à valorização da categoria. De forma simplista, trata-se da possibilidade de espumantizar vinhos brancos obtidos a partir da casta tinta Baga (‘blanc de noirs’), com uma marca específica e de fácil internacionalização (Baga Bairrada), a um preço mínimo fixo. Esta nova categoria, que contou com vasta adesão dos produtores, associa aquela que será talvez a casta regional mais conhecida à produção do seu vinho mais icónico. Resultado? Um milhão de garrafas vendidas em 2018, segundo estimativas da CVR bairradina. Não pode ser só para o Natal…

Em Távora-Varosa, por sua vez, o desafio não está tanto na criação de novas categorias, mas na valorização dos espumantes. Com efeito, a melhoria dos preços pagos aos produtores de uva é reconhecida transversalmente pelos diversos operadores como uma necessidade da região, cuja produção é dominada pelas caves Murganheira/Raposeira e pela Cooperativa Agrícola do Távora. Orlando Lourenço, presidente da CVR regional, havia já sublinhado as diferenças que opõem esta zona de produção de espumantes com outras, como Champanhe ou os Cava espanhóis. Em 2016, as exportações de Cava ascenderam a 1300 milhões de euros, sendo que Champanhe, com os seus 36 mil hectares de vinha, registou um volume de negócios de 4600 milhões de euros, dos quais 3200 milhões de euros resultam de exportações. Távora-Varosa conta com uma área de vinha de aproximadamente 3500 hectares e 1700 viticultores, sendo que a sua elevada altitude média (550 metros) e solos graníticos conferem condições especialmente benéficas para a produção destes vinhos. A grande maioria dos pequenos viticultores encontra-se agregada na Cooperativa Agrícola do Távora, que reúne 1320 associados. Destes, cerca de 80% produzem até seis toneladas de uva. Mas há focos de preocupação, desde logo na substituição, que se verifica nos últimos anos, de grandes áreas de cultura da vinha pela plantação de pomares de maçã, o que conduz à perda de matéria-prima para produção de espumantes e consequente redução de volume de vinhos no mercado.

Prova dos 30

A prova temática da Revista de Vinhos reuniu cerca de três dezenas de amostras de espumantes desta categoria que pretendeu ser o mais abrangente possível, ao reunir vinhos das mais variadas regiões do país. Assim, para além da Bairrada e Távora-Varosa, juntam-se espumantes do Douro, Vinhos Verdes, Dão, Alentejo, Setúbal e Lisboa, a comprovar a diversidade de origens. O sommelier Manuel Moreira traçou um retrato desta prova: “O espumante é um produto de extrema exigência técnica, que deve ser projetado e concebido adequadamente como produto específico, em toda a extensão da cadeia de produção, desde a vindima até à colocação no mercado”. Nesse sentido, a prova permitiu aquilatar da “evolução qualitativa média dos vinhos degustados”, sendo que “os produtores de regiões com maior tradição e com processos bem implementados destacam-se pelo equilíbrio e elegância dos vinhos, nomeadamente a Bairrada”.
O crescimento desta categoria “tem incentivado e proporcionado que outras regiões menos tradicionais e vocacionadas na produção deste tipo de vinho apresentem produtos de boa qualidade”, como o Douro, Alentejo e Tejo. Por sua vez, “Lisboa e, sobretudo, os Vinhos Verdes, com excelentes condições naturais para uvas destinadas a este produto, começam a mostrar novos perfis de espumantes”, destaca o colaborador da Revista de Vinhos. “Especialmente a última, com espumantes de cariz frutado fresco, menos ricos ou complexos, que apontam a novos momentos de consumo”. Por outro lado, algumas castas, entre as quais Arinto, Alfrocheiro, Touriga Nacional, Baga, Cercial e Alvarinho, bem como “as tradicionais Chardonnay e Pinot Noir”, são já “usadas com frequência devido ao potencial específico para esta tipologia, dominando boa parte dos blends destes vinhos”.


Com algumas exceções, das amostras em prova, a categoria Millésimé “não apresentou a mesma perceção de prestígio que os equivalentes de Champanhe”, afirmou Manuel Moreira. Ou seja, “não deixa de ser interessante saber que um espumante provém de uma colheita específica, mas esta categoria deveria corresponder a um nível sensorial qualitativo ‘especial’. Espero que a trajetória ascendente na oferta e na procura permita que, nestas gamas, o diferencial de qualidade se destaque em relação aos não Millésimé”. Outra tendência interessante apontada passa “a produção cada vez mais frequente de vinhos de estilo Extra Bruto e Bruto Natural, correspondendo a aumento do nível de sofisticação no consumo de espumante”, concluiu.
Já para Guilherme Corrêa, “encontramos na nossa prova alguns espumantes com a “mousse” não integrada na estrutura. Os grandes espumantes do mundo são sempre cremosos; estes podem permanecer no palato com prazer por muitos segundos, sem termos que deglutí-los ou cuspí-los por excesso de espuma. A boa “mousse” derrete na boca e lembra-nos que estamos a beber um espumante com um sussurro, não com um grito tonitruante. A “mousse” cremosa depende de uma série de fatores, como da qualidade da matéria prima, das leveduras empregadas, da tomada de espuma a baixas temperaturas, mas é fundamental que não seja protagonista e sim coadjuvante para a expressão do terroir, da qualidade das uvas e do talento do enólogo”.