Espargo selvagem, o sabor da terra

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

É com a frescura dos dias primaveris que ele rebenta do solo, tal como um sussurro da terra em busca do sol. O espargo selvagem será uma das maiores riquezas que um gastrófilo pode encontrar pela frente. Tenro, carnudo, levemente crocante e acidulado, com uma subtil nuance de noz, quanto menos se cozinhar melhor. De cor verde escura a violeta, é um verdadeiro broto da primavera, surgindo a polvilhar a paisagem depois das primeiras chuvas, mas ao apelo das temperaturas mais amenas. Em Trás-os-Montes ou Alentejo é onde crescem com mais sabor. Junto de vinhas, olivais ou em plena floresta, colhê-los torna-se mais do que um passeio às entranhas da Natureza. Requer perícia e “olho” certeiro. Foi em terras do sul, mais propriamente Estremoz, que fomos descobri-lo e saboreá-lo com quem sabe. Antes e depois, no prato, as primícias dos espargos são um prazer.

 

Grimod de la Reynière chamava-lhe “o príncipe”, “o melhor e mais delicado dos vegetais”. O espargo selvagem tem nome científico. Chama-se Asparagus Acutifolius (ou espargo-bravo-menor) e costuma apanhar-se em meados de março, princípio de abril. Mas, este ano, a seca severa atrasou muito o seu aparecimento. Isto porque as suas cabecinhas espigadas e verdes rebentam depois das chuvadas primaveris, aquelas que puxam da terra todo o seu vigor. Daí o seu sabor envolvente, como se a Natureza tivesse aqui a sua sápida forma de expressão. Só para que saiba, existem 300 espécies de espargos, sendo que apenas cerca de 20 são comestíveis. A planta pertence à classe das liláceas, onde se incluem a cebola, alho ou alho francês. Mas os nossos preferidos são os selvagens, pela concentração de sabor. Procurá-los é mais ou menos como achar uma agulha num palheiro. Exige perspicácia e experiência. O melhor é perscrutar as hastes entre os arbustos, muros e pedras. As espargueiras ou corrudas nascem junto a caminhos ou ribeiros e perto de dois tipos de árvore, sobretudo: as oliveiras e sobreiros. Outra técnica eficaz é olhar para o chão procurando novos rebentos. No Douro ou no Alentejo é onde crescem mais saborosos, a par da Estremadura, Ribatejo e Algarve.

Enfie umas galochas, esqueça o escritório e embrenhe-se na Natureza pura, que é onde eles crescem. Neste caso, o nosso destino é Estremoz, tendo como cicerones Alice Pola, uma cozinheira de mão-cheia que dá asas à tradição da gastronomia alentejana numa cadeia do século XVI, e o mentor do restaurante Cadeia Quinhentista, João Simões. O sol já vai no seu pico e as planícies espraiam-se ao longe, debruadas pela Serra de Ossa e a Estremadura lá ao fundo. Depois de percorrermos as ruas coadas pela luz de cal, refletida pelo imenso casario dentro das muralhas do castelo, rumamos a Granja, de cesto na mão, a poucos quilómetros da cidade de Estremoz.
Manchas de tremocilha povoam de amarelo a paisagem primaveril onde pequenos exércitos de oliveiras se alinham num “patchwork” de cores matizadas, aqui e ali, por pequenos tufos verdes. Esses pequenos arbustos são mais nem menos do que as nossas espargueiras. O seu nome batizou, aliás, o chamado “esparregado”, feito inicialmente de espargos e não de grelos ou espinafres, como atualmente.

Ao descobri-las, normalmente nas imediações das oliveiras – pois gostam de terrenos não cultivados – deparamo-nos com duas dificuldades. A primeira é que são cravejadas de picos e a segunda é conseguir descortinar entre elas o nosso desejado espargo, escondidos e bem dissimulados. Só o olho clínico da experiência consegue tal feito. Alice Pola e João Simões já apanharam alguns e nós continuamos a não ver nada. De repente, lá está ele. Um filamento verde encimado por uma espécie de florescência verde espinada. Uma verdadeira emoção descortinar o nosso primeiro espargo. De repente, a procura torna-se viciante e as horas passam a voar enquanto vamos descobrindo vários exemplares, mais ou menos pequenos, pois a produção deste ano é, para além de mais tardia, também mais reduzida. A conversa rola entre risadas e o nosso cestinho de vime vai-se enchendo de espargos silvestres frescos, a pedir serem saboreados, até porque os aromas telúricos da planície alentejana abrem o apetite. Experimentamos um mesmo acabado de colher. Uma verdadeira explosão de sabor na boca, crocante pela concentração de clorofila e expressão do terreno argiloso e mineral. Aconselhamos, de facto, que se aventure neste verdadeiro prazer de andar pelos montes, entre oliveiras centenárias alentejanas, rodeadas de planícies a perder de vista, em busca destes tesouros gastronómicos.

Um molhinho deles pode valer cerca de oito euros e são várias as pessoas que os vendem nos caminhos, depois da romaria recente da sua colheita tão desejada quanto tardia. “Nunca se cortam as folhas onde estão os espargos, pois aí vão nascer outros espargos”, avisa-nos Alice Pola. Por isso mesmo, a colheita é feita com todo o cuidado para não afetar o rizoma da planta. Isto porque se tentar quebrar a planta num local que não cede, significa que essa parte é demasiado dura para ser comida e deve partir a planta mais acima. Delicado, o espargo exige perícia na colheita, mas também vale a pena esperar para o apreciar no prato. Isto porque a planta perene só cresce completamente quando esta parte espinhosa da extremidade se forma. E é inútil andar com facas ou tesouras.

A apanha de espargos selvagens é feita à mão, o que torna a incursão na floresta ainda mais excitante e, além disso, é o corte ideal para encontrar o ponto perfeito para o partir.
A manhã é a melhor hora para os colher, sendo que os turiões deverão ser apanhados eretos, antes que o ápice se abra e ganhe folhas. Quando começam a ficar finos, a colheita deve ser travada de forma a não ocorrer a exaustão do rizoma que afeta o sistema radicular e provoca a morte da planta. Os seus caules são longilíneos e finos, mais parecendo lianas, e a melhor parte é a zona espinhosa, que finaliza a planta. Quando se começa a colhê-los e se vão reunindo na mão parecem um “bouquet” de espigas de centeio, mas de cor verde escura. Deve ser colhido não tarde demais, caso contrário os caules ficam fibrosos e lenhosos. Por isso, há que procurar mesmo as primícias.

A sua textura define-se por uma grande quantidade de fibras, pelo que há o risco de se tornarem fibrosos se não forem jovens. Passa-se a mão ao longo do rebento e, sem forçar muito para que não se parta, tira-se da terra, sendo que os rebentos grossos e compridos, de cor verde escura brilhante e cabeças bem fechadas são os melhores. Se no princípio parecemos um elefante numa loja de porcelanas ou absolutamente cegos, de repente apanhamos o jeito e rapidamente a técnica se apura. João Simões aproveita para sublinhar o momento: “É isto que faz a diferença no Alentejo, esta riqueza do sabor. E este tipo de hábitos deve ser preservado, esta relação com a Natureza, o apreço pela sazonalidade dos produtos, coisa que nos desabituamos de apreciar”. João Simões tem feito um trabalho exemplar nesta recolha e preservação do velho receituário alentejano e na recuperação de espaços históricos que se encontravam ao abandono, como é o caso do restaurante Cadeia Quinhentista ou a Pousada de Elvas, que reabilitou em 2013. Um rebanho de ovelhas passa ao lado e os balidos diluem-se no ar quente desta tarde primaveril onde se saboreiam espargos silvestres na Natureza pura.

Mais à frente, apreciamos a lindíssima Quinta de Dona Maria, com uma história marcante na enologia portuguesa e cuja traça joanina se impõe. “Isto é terapêutico. O contacto com a Natureza, os seus sons, os pássaros, o balir das ovelhas… fica-se com a alma nova”, desafaba Alice Pola, que aprecia tanto a liberdade como a sua cozinha, apesar de, nesta última, ver o céu aos quadradinhos, já que se trata de uma cadeia quinhentista. Contrariamente ao “primo branco”, o espargo selvagem é muito mais fino, sendo que o seu diâmetro pode ir de um a seis milímetros e 30 cm de comprimento. O seu sabor é também muito mais pronunciado do que o “domesticado”, o Asparagus Officinalis, de cor branca porque cresce debaixo da terra, o que impede o desenvolvimento da clorofila. São, assim, mais delicados e adocicados. O espargo gera caules aéreos que podem atingir mais de 1,5 metros de altura, ramificados e de folhagem fina.  
A partir da parte subterrânea partem, todos os anos novos ápices caulinares (parte comestível da planta), apelidados botanicamente de turiões que são a forma juvenil do caule aéreo do espargo, de forma piramidal, encerrando, na sua ponta, um gomo de muito grandes dimensões onde se encontram os primórdios de todos os órgãos aéreos, têm uma consistência tenra, por vezes fibrosa, principalmente com o envelhecimento.

Esta estrutura, enquanto está debaixo da terra e protegida da luz, é branca, eventualmente com cores violáceas mais ou menos pronunciadas, depois de exposto à luz o turião inicia a fotossíntese, ficando verde. O solo é outro aspeto importante, pois os espargos “fogem” de lugares ricos em matéria orgânica, e dos excessivamente argilosos, com má drenagem interna. A má drenagem é um inimigo do espargo por fazer proliferar alguns fungos radiculares e, além disso, em solos pesados, a planta tem maior dificuldade em emergir, resultando turiões mais fracos, por vezes até deformados.

Segundos sentidos à parte – apesar do espargo ser considerado afrodisíaco desde tempos imemoriais que remontam aos egípcios, aos gregos e aos romanos - as pontas novas são a melhor parte. Espécie de lanças carnudas que convidam a trincar. Estes rebentos nascem do rizoma e quando têm suas folhas e espinhas muito ternas constituem um alimento extraordinário. Por isso mesmo, o Novel Food Catalogue integra, aliás, no seu catálogo os espargos acutifolius, desde há dois anos, além da bolota.

Uma iguaria que faz bem à saúde

Espontâneos em toda a bacia mediterrânea, os espargos foram cultivados aproximadamente há três mil anos, sendo então já conhecido pelas suas propriedades gastronómicas e terapêuticas, e o seu nome deriva da palavra grega que significa caule ou rebento. Sendo uma verdadeira iguaria do ponto de vista gastronómico, o espargo deve ser pouco manipulado. O melhor é cozinhar a vapor poucos minutos ou branqueá-los. Por alguma razão o imperador romano Augusto inventou a frase “velocius quam asparagi conquantur” que significa “mais rápido do que cozinhar espargos”, já que a cocção deve ser rápida. Apício apreciava-os no prato, sugerindo receitas no seu De Re Coquinaria, aconselhando sobretudo os de Ravena. Plínio chamava-lhes “planta de Deus” e Luís XIV era um verdadeiro apreciador, reabilitando o espargo, algo esquecido desde a Idade Média. 
Para além de serem uma iguaria, o consumo de espargos tem inúmeras vantagens. Acima de tudo pelo sabor, mas não possuem quase calorias e são muito saudáveis, contrariando a ação dos radicais livres. Ou seja são um excelente fator de anti-envelhecimento e o seu consumo regular estimula o sistema imunitário. São fonte de cálcio, cobre, fibra, ácido fólico, ferro, magnésio, niacina, fósforo, potássio, proteínas, riboflavina, tiamina, zinco, vitamina A, B6, C, E e K. Ou seja, faz bem ao coração, é diurético, desintoxicante ao prevenir as doenças do fígado e tem ainda ação probiótica, estimulando a digestão. Só a ingestão de cinco espargos equivale à ingestão de 60 por cento do valor diário recomendado de ácido fólico (200 a 400 miligramas). Fonte do complexo de vitamina B, essencial ao bom funcionamento do metabolismo, nomeadamente vitamina B1, que ajuda as células do organismo a converter os hidratos de carbono em energia. Previne também o aparecimento de pedras nos rins. O consumo regular de espargos estimula ainda o sistema imunitário, protegendo o organismo, por isso, nada melhor do que conciliar sabor e saúde num mesmo momento. Sem gorduras, o espargo possui ainda fitoquímicos identificados com as concentrações mais elevadas que são os compostos fenólicos. Salienta-se em especial a quercetina e a rutina, substâncias fitoquímicas da classe dos flavonóides. Estas duas substâncias exibem uma forte atividade antioxidante, promovendo diversos efeitos positivos na saúde, através da neutralização dos radicais livres e na proteção do corpo humano contra o stress oxidativo.

Os espargos são, de facto, verdadeiras lanças de um exército invisível que luta, neste caso, a favor da saúde. Tudo motivos mais do que convincentes para os saborear. Sobretudo se conseguir apanhá-los antes de os cozinhar, vai ver que a experiência será ainda mais compensadora. E não se esqueça que, para além do mais, têm fama de afrodisíacos.
 

Trabalho originalmente publicado na edição nº 342 da Revista de Vinhos (maio de 2018).