Na lezíria ribatejana, com um emblemático arroz

As malandrices do carolino

 
Fátima Iken

Fátima Iken

É um bago generoso e tenro, com uma textura aveludada e macia. O “terroir” configura-lhe carácter e sabor, crescendo no estuário da foz do Tejo. O carolino da lezíria ribatejana foi o primeiro arroz a receber uma IGP (Indicação Geográfica Protegida). Organoleticamente único, com grande poder de absorção de aromas e sabores, o carolino é o companheiro versátil na gastronomia tradicional portuguesa, apesar da semente ser… italiana. Nem imaginam o longo percurso de uma semente até à espiga e de um grão de arroz, do campo ao prato. Ter-se-á ainda mais respeito quando se enfia uma garfada à boca deste nobre produto.

 

Estamos em Salvaterra de Magos num dia de chuva e, para já, só se veem lençóis de água a perder de vista, sob um céu cinzento-malva, apenas pontuado por enormes manchas de nuvens em forma de algodão doce. Por abril preparam-se as terras, em maio lançam-se as sementes. Pouco depois, as plantas do arroz irão despontar em extensões de verde, polvilhadas de garças, numa belíssima imagem que deveria ser quase obrigatório conhecer de perto. Em junho será tempo de monda e, depois, os campos tornam-se dourados, ondulando espigas cheias e ceifadas ao sol quente de setembro, preferido pelas cegonhas, nestas terras de aluvião, ricas e férteis.

Não será por acaso que somos os maiores “arrozeiros” da Europa, com um consumo de quase 18 quilos anuais per capita. Apesar de Portugal possuir arrozais nos vales do Sado, Mondego, Tejo e Sorraia – cujos estuários e habitats são protegidos e mantêm ecossistemas – e de sermos o terceiro produtor da União Europeia (com 30 mil hectares e 150 milhões de quilos), o arroz não chega para as encomendas. Somos obrigados a importar mais cerca de 40%. 

O arroz carolino acaba por ser mais uma referência gastronómica do que ter origem propriamente lusa. De facto, a semente do “carolino” é italiana, existindo também em Espanha, na França, Roménia, Bulgária. Chama-se Ariete. É produzida em solo luso, mas a semente não é mesmo “tuga”. Surpreendido? É verdade. Se calhar é por isso que lhe chamam “malandro”. E, claro, porque o arroz caldoso que se lhe alia é difícil de conseguir no ponto, e “foge do prato”. 

O próprio nome “carolino” terá origem na similitude da variedade com a da Carolina do Sul, na América. Por isso mesmo, o COTArroz (Centro Operativo e Tecnológico do Arroz), situado em Paul de Magos, também em Salvaterra de Magos, está a tentar fazer uma semente de perfil português em laboratório, com características organoléticas mais próximas do perfil luso. Um processo demorado, que implica a produção em campos de ensaios durante anos, mas que está quase terminado. Num futuro próximo, talvez para o ano, poderemos ter variedades nacionais para contrapor às atuais, todas de origem italiana, com características organoléticas do arroz japónico e índico. Na especificidade nacional, é mais uma forma de cozinhar do que propriamente uma semente. E cozinhá-lo não é nada fácil, apesar de absorver intensamente os sabores e aromas dos ingredientes.

Na lezíria ribatejana, o carolino nasce e cresce em solos de características e temperaturas singulares. Também as horas de sol e os tipos de água o configuram de forma única, a nível de sapidez e aroma. O “terroir”, tal como no vinho, importa muito para a diferenciação do arroz e das variedades, como se passa com as castas. O arroz produzido no Mondego, Tejo ou no Sado tem também especificidades muito próprias, sendo o primeiro até diferente pela maturação lenta e específica, que torna o arroz carolino do Baixo Mondego detentor de um sabor único. Mas, desta vez a nossa reportagem incide sobre a lezíria ribatejana.

A orizicultura faz parte da cultura portuguesa e tem raízes ancestrais, tendo sido trazida para a Península Ibérica pelos árabes, no século VIII. No entanto, apenas no século XVIII se começou a cultivar o arroz de forma mais sólida em Portugal.

A Orivárzea (arroz “Bom Sucesso” e “Belmonte”) é uma das empresas que produz o carolino do campo à embalagem e a primeira a ter recebido uma Indicação Geográfica Protegida (IGP). Todo o circuito produtivo é feito em modo integrado – ausência de pesticidas e apenas herbicidas seletivos e biodegradáveis – e exclusivamente na área geográfica delimitada, desde a sementeira à colheita e acondicionamento, em que foram pioneiros. Hoje, exporta já para 15 países e está presente em “restaurantes com estrela Michelin”, como faz questão de sublinhar Jorge Parreira, o diretor comercial e de marketing da Orivárzea. Leonel Pereira ou Alexandre Silva, são alguns dos “estrelados” que trabalham com a marca, bem como Vítor Sobral, Miguel Castro Silva, Justa Nobre, Augusto Gemelli ou Henrique Mouro, este último tendo inaugurado no ano passado um restaurante só dedicado ao arroz, no Chiado, Lisboa.

Integram a Orivárzea 41 acionistas, produtores de arroz numa mancha que perfaz 4.800 hectares que semeiam, a par de oito aderentes em estágio. “O estágio é feito durante dois anos, para que o agricultor se vá adaptando às regras da empresa e para avaliarmos se pode entrar e cumprir as normas da organização”, afirma. Os 49 produtores são de Salvaterra de Magos, Benavente, Coruche, Azambuja e Vila Franca de Xira, apesar da mancha orizícola das lezírias ribatejanas incluir outros concelhos. Seja como for, foi este o primeiro arroz a deter a IGP, há 11 anos. O trabalho em grupo permite o escoamento e venda de matéria-prima de modo mais facilitado, em economia de escala.

A colheita obedece a regras, da data ao estado fenológico e humidade do bago, mas também na maquinaria usada quer na colheita quer no transporte, armazenagem, secagem, descasque, branqueamento e polimento. Tudo se processa aqui.

A estratégia que hoje faz da empresa líder de mercado de arroz carolino passou “por valorizar o arroz como uma ‘commodity’”, algo ambicioso e dificilmente exequível, mas que acabou por funcionar. “O mercado caiu ano passado 4% e nós crescemos 2%”, nota. Diferenciar o produto – produzem a semente em Portugal – e a venda por tipo de arroz (e não de variedade) também funcionou. E é precisamente aqui, na lezíria ribatejana, que é produzida a maior quantidade de carolino do país. Para além de arroz carolino, a empresa produz ainda arroz agulha (da variedade Sprint), arroz para risoto e sushi (da variedade Lice), da família dos arbórios, e ainda arroz agulha (variedade Gladio), integral, aromático (da variedade Giano) e baby rice, produto único destinado à alimentação infantil mas que também pode ser usado na gastronomia normal.

Este é um nicho do mercado da segurança alimentar, nomeadamente, o mercado BTP (baixo teor de pesticidas) que serve para “baby food” (alimentação para bebés), já que o arroz provém de zonas muito puras. Trata-se de solos mais virgens e intocados por poluentes – teor de arsénio e metais pesados muito abaixo dos limites – sendo 15% a 20% destinados ao mercado interno e 5% à exportação. Essa estratégia trouxe também mais aceitação por parte dos profissionais de cozinha e maior divulgação da marca.

O facto de ser tudo produzido em Portugal torna-se numa óbvia mais-valia em termos de valorização do produto na economia nacional. A estratégia de internacionalização, com a mesma filosofia, é outro dos caminhos. “Mais de 60% do arroz que se come em Portugal é importado. Nós produzimos 30 mil toneladas por ano, usando duas famílias: a japónica e índica”.

 

O consumo está a crescer


O arroz carolino é a cariopse desencasulada da planta Oryza sativa L., subespécie japónica. O agulha e o aromático ou basmati são já subespécies de “índica” – enquanto o índica é de grão translúcido e muito rico em amilose, a japónica contém mais amilopectina. O polímero de dois tipos de amido diferencia, assim, o arroz. Quanto mais amilose tiver o arroz, maior quantidade de calor, água e tempo serão necessários para quebrar a cadeia molecular e deixar que a água penetre no grão e este inche. Já o agulha tem tendência para não absorver os sabores de outros alimentos e para ficar solto. É ideal para arroz branco e de forno.

O arroz de grão curto (variedades japónicas) é mais rico em amilopectina e, assim, ótimo para sushi, possuindo mais humidade e ficando mais cremoso, tendo ainda grande capacidade de absorção de sabor. Daí o carolino conseguir complexidade de sabor, pois absorve as moléculas dos caldos bem melhor, prolongando-os na boca, é aveludado, suave, cremoso. O bago cheio após a cozedura matiza-se num líquido cremoso que se adapta tão bem à nossa gastronomia. Mas exige muito cuidado para que a gelificação do amido não degenere em papa.

Aqui, o arroz cresce numa área plana de lezírias e várzeas, os solos são de composição argilosa e limo-argilosa, originados por partículas férteis trazidas pelas cheias e marés vivas, que sofreram posteriormente uma sedimentação sobre camadas arenosas. 

A amenidade do clima mediterrânico temperado, mas também de influências atlânticas, numa configuração de microclima, integrada na Zona de Proteção Especial à Reserva Natural do Estuário do Tejo, é outra mais-valia. O microclima desta região tem menos humidade e maresia, o que possibilita produzir praticamente sem recorrer aos pesticidas.

Se há alguns anos o arroz carolino era preterido pelo agulha, numa escala de 30 para 70%, hoje a situação inverteu-se. “Conseguir mudar o chip aos consumidores”, observa Jorge Parreira, foi uma tarefa que levou tempo, mas alcançou-se e hoje a produção de carolino atinge mais de 70%. Este consumo marcadamente de arroz carolino radica em novos hábitos alimentares e na ação da grande distribuição, na opinião dos chefes de cozinha e no apoio ao produto nacional, já que praticamente não há campanhas nacionais estatais. “Crescemos, nos últimos quatro anos, 5 milhões de quilos no mercado nacional. Se o consumidor for informado procura um produto com qualidade e diferenciado”, garante-nos.

O carolino tem aspeto vítreo e cristalino e as variedades mais usadas na comercialização são a Ariete e a EuroSis. Portugal é praticamente autossuficiente na produção de arroz carolino.

O agulha é uma espécie de híbrido de japónica com índica, que é cultivado em zonas mais quentes, é mais comprido, mas não absorve tanto o sabor dos alimentos como o carolino, que tem mais goma mas é mais produtivo. Para além do carolino e agulha, existe ainda o arroz glutinoso, integral, jasmim, (Vietname e Tailândia), selvagem, vaporizado, basmati ou aromático e arbóreo, sendo que o grão pode ser curto ou longo.

A origem do arroz terá sido o delta do Ganges, sendo que a China o cultiva já há seis mil anos, onde se tornou extremamente popular, sobretudo no Norte. No Japão, a cultura do arroz terá surgido mais tarde, entre III ou II a.C. Do Oriente, o arroz migra através da Pérsia para o continente europeu e terão sido os árabes a trazê-lo para a “Península Ibérica, cerca do século VIII”. “O Livro da Agricultura”, escrito no século XII por Ibn al Awan, já refere o arroz (ar-ruzz). Mas seria apenas no reinado de D. Dinis que o cultivo foi incrementado. Contudo, só nos séculos XVIII e XIX ganha consistência em Portugal.

São, aliás, os portugueses a levar o cereal para África e os espanhóis para a América. No fim do século XVII, chega também à Carolina do Sul uma variedade muito semelhante ao nosso carolino, que terá dado o nome ao nosso arroz. Mas, nesses tempos, o arroz era ainda um produto alimentar apenas consumido pelos ricos. Seja como for, no fim do século XVIII existem já referências escritas em Portugal à cabidela e à lampreia do Minho feitas com arroz, curiosamente no Norte, onde não havia cultivo de arroz devido às baixas temperaturas. No início do século XX, o incremento do consumo e do cultivo solidifica-se finalmente.

 

As voltas que um bago dá

 

Por todas estas razões, o “carolino” tem mais sabor. Mas nem nos passa pela cabeça, quando saboreamos um prato deste arroz da nossa gastronomia tradicional, as voltas que é preciso dar para o termos cremoso e macio na boca. Do campo à mesa vai um mundo de trabalhos e fases de procedimento.

Em março prepara-se a terra e em abril/maio semeia-se através de avião. Mas se atualmente se semeia já com avionetas e tratores, na lezíria ribatejana tempos houve em que era praticamente um trabalho artesanal insano, mal pago, que obrigava a andar na água gelada em condições agrestes, semeando à mão ou de barca, hoje mais raro.

Em junho é altura da monda e em julho ocorre a inflorescência, estando a panícula formada, passando-se à fase da floração. Dada a fecundação, os grãos de arroz iniciam o enchimento e maturação, começando a senescência das folhas da planta. Segue-se o estádio lácteo, em que o bago enrije com líquido leitoso, pastoso, em que o grão vai perdendo água, e a fase dura, em que o grão se torna consistente, tomando a coloração e textura próximas das definitivas. Em setembro e outubro é ceifado depois de entrar na maturação, fase em que já é difícil partir o grão com as unhas. Depois é seco e limpo, já na fábrica equipada com maquinaria de ponta. O arroz entra então em silos que têm capacidade para duas mil toneladas, depois de seco e limpo com jatos de ar frio – não utilizam produtos químicos – para os parasitas, como o gorgulho, não se propagarem nos silos e retirar humidade. É descascado e branqueado – para tirar a película – com fricção e, após mais um segundo polimento de jato, segue-se a seleção, grão a grão.

A fábrica – que trabalha a partir de energia sustentável de painéis fotovoltaicos – distribui-se por três pisos, sendo construída na vertical, como todo o processo. Equipamo-nos de batas e toucas e entramos num ambiente imaculado, algo estéril. Há um cheiro a arroz no ar, mas apesar disso quase nem se vê um grão de arroz, por incrível que pareça, pois existe contacto zero com o ambiente.

Estamos agora junto à máquina de branquear e polir. Primeiro desce para branquear e tirar a película gordurosa, retirando o pericarpo por fricção, transformando-se o arroz integral em branco. Quanto mais branqueado for o arroz, maior será a capacidade de absorção de água. Entra dourado (integral) e sai branco transparente. Numa hora, são cinco toneladas de arroz que por aqui passam.

O branqueamento do arroz é conseguido através do desgaste da película e do grão de arroz, até obter o grau de brancura que se pretende. O polimento consiste na eliminação das partículas de farinha agarradas ao grão, ficando o arroz com o brilho natural e aspeto ceroso.

A seguir, passa para baixo, para um segundo branqueamento, sendo hora de escolher os grãos na máquina seletora, que escolhe ao milésimo de segundo e a uma velocidade considerável. “Esta é a nossa menina dos olhos”, diz Jorge Parreira, enquanto observa uma chuva de bagos a ser triada automaticamente. São assim extraídas as trincas (grãos partidos) e os grãos com defeitos de cor. Esta foi a única fase em que conseguimos, aliás, vislumbrar o arroz, mas mesmo assim longe de qualquer contacto.

Próxima etapa, o processo das análises laboratoriais organoléticas e físicas, onde se descobrem defeitos, como o arroz bravo (grãos vermelhos), as pragas no campo (que escurecem os bagos), os amarelos que revelam a falta de maturação ou as questões de humidade no armazenamento e os “trincas” (bagos partidos”). Também aqui é quase tudo feito com a ajuda de software, o que facilita o trabalho. Finalmente, o arroz branqueado é embalado em atmosfera controlada, acondicionado e encaminhado para a armazenagem final, onde aguarda a expedição.

As variedades são, como vimos, a carolino, agulha, aromático, risoto e “baby rice”. Este último visa agora ser expandido para os mercados de exportação, com vista também à internacionalização, procurando mercados para valorizar um produto diferenciado. Na empresa – hoje com uma faturação de 20 milhões de euros - trabalham 30 pessoas e apesar da cada vez maior aplicação de tecnologia de ponta, a ideia não é dispensar funcionários.

 

O mais difícil de cozinhar

 

O bago do arroz carolino faz parte da nossa gastronomia. É mais ou menos como o bacalhau. A origem não é portuguesa, mas faz parte do nosso genoma culinário, construindo a nossa identidade. É um facto que cozinhamos arroz de tudo e com quase tudo. Mas ao optarmos pelo arroz carolino, temos de ter mais sapiência culinária. Conseguir um bom prato de arroz carolino, na textura e sabor, não é para todos. Por isso é “malandro”, porque nos foge... requer muito carinho, cuidado e atenção. Nada de pressas.

Enquanto os italianos apelidam risoto à forma de cozinhar, os espanhóis paella para o arroz bomba, os turcos e indianos “pilaf” ou “byriani” ao aromático, nós chamamos a variedade. Ainda não foi estabelecido para Portugal um nome para uma maneira de cozinhar própria aplicada ao arroz, por incrível que pareça.
O tempo de cozedura e a quantidade de água são fulcrais para conseguir um bom arroz. O carolino tem a mais-valia de absorver os componentes aromáticos dos ingredientes que se lhe juntam, com a retenção dos caldos na estrutura, criando uma textura cremosa, glutinosa, por causa da goma, e suave, que se prolonga na boca. E um bom caldo é essencial para conseguir um bom resultado.

Se optarmos pelo Ariete são necessários 11 minutos de cocção, tendo em conta a goma natural e o procedimento indicado será o mais lento possível: o chamado lume brando é o ideal. A quantidade de água aconselhada é de 450 ml. para 150 gr. de arroz, ou seja, não o dobro mas o triplo de água. Já o agulha, por exemplo, precisa de apenas 9 minutos e menos água, equivalente ao dobro da quantidade de arroz. O arroz carolino não é para ser cozido “al dente”. O ponto ideal é quando, ao trincá-lo, não se encontra um núcleo duro no interior do bago mas sim uma firmeza aveludada e cremosa na boca, algo viscosa.

Como vimos, cada bago possui polímeros de dois tipos de amido: a amilose e amilopectina. Esta variedade de grão longo é muito rica em amilopectina e produz, assim, uma textura aveludada e muito saborosa. Ao ser cozinhado e ao entrar água na estrutura obriga ao enfraquecimento das ligações entre as diversas moléculas, o que leva os bagos a insuflar. Se a cocção for exagerada, a estrutura molecular colapsa, resultado no chamado arroz “espapaçado”. E ninguém quer que isto aconteça, apesar de haver quem goste.

Ainda que a semente seja italiana, o carolino é um arroz muito nosso, que esteve esquecido durante muitos anos, tal como a cozinha portuguesa, mas que começa finalmente a ter o reconhecimento do berço e nobreza. Já não era sem tempo.