Pão-de-Ló

Fotografia: Daniel Luciano
Fátima Iken

Fátima Iken

Desfaz-se na boca num rendilhado etéreo. Leve como o ar, quase se volatiliza, espécie de véu que respira entre gemas e açúcar, um pouco de farinha em chuva e nuvens de claras em neve, no caso de algumas receitas. Claro, é o nosso pão-de-ló, hoje marca da doçaria nacional, mas que na origem tem pouco de português. De bolo judaico a adaptação de um cozinheiro francês, com múltiplas variantes regionais nascidas em diferentes conventos, certo é que na sua base há uma semântica espiritual. E sim, é uma bênção dos céus.

 

 

É hoje um símbolo da doçaria portuguesa. Mas o facto é que se vos disser que a primeira versão de “pão-de-ló” (“pan de llo”) era, nada mais, nada menos, que um bolo feito só de açúcar, água de rosas e amêndoas, género de massapão, envolvendo apenas a calda açucarada nas amêndoas trituradas e não moídas, talvez fiquem a pensar.
Sendo que o pão-de-ló está iminentemente ligado à época da Páscoa, não deixa de ser curioso que exista um bolo judaico alusivo ao Pesach feito de pó de amêndoas e açúcar. O livro bíblico da Génese descreve, aliás, as amêndoas como “os melhores frutos” e há enésimas menções às amêndoas nas escrituras hebraicas (73, para sermos mais precisos). A palavra amêndoa, em hebraico, significa “despertar”, porque a amendoeira era a primeira árvore a florescer. A “menorah” (candelabro com sete braços) era suposto assemelhar-se a uma flor da amendoeira e, na época da Páscoa, a farinha era substituída por pasta de amêndoa por ser proibido usar fermentos/leveduras, fazendo assim as vezes de uma espécie de pão ázimo. 
Ainda hoje, o “kamishbrot” ou “mandelbrot” é uma reminiscência deste doce. Teria tido origem já no tempo dos Ashkenazi, judeus que começaram a sua diáspora ainda no tempo do Império Romano, no primeiro milénio...


A “Páscoa” mais não é que o “Pesach”, palavra hebraica que significa “passar além”, simbolicamente relacionado com o “passar além da escravidão à liberdade”. Daí comermos o nosso pão-de-ló exatamente na Páscoa, no primeiro mês lunar judaico do calendário sagrado, correspondendo a parte de março e abril, onde famílias e amigos se reúnem em torno da mesa de Pesach, seguindo-se um típico ritual de preparação integrando orações e uma culinária característica da ocasião.
A presença de judeus no século XV em Portugal resultou da sua expulsão de Espanha, sendo então aqui acolhidos por D. João II. Mais tarde, D. Manuel decretou, contudo, a conversão forçada e assim surgem os cristãos novos ou marranos. Só que alguns, apesar de integrados, permaneciam fiéis à sua religião, inventando formas de esconder a convicção religiosa. Deixaram, obviamente, as suas tradições em Portugal. A Infanta Dona Maria, mulher culta do século XVI, coligiu em manuscrito o primeiro inventário de receituário do seu país, uma vez que contraiu casamento com o duque de Parma, Alexandre Farnese, e partiu para Nápoles, levando assim o seu livrinho com receitas do país de origem e que hoje ainda se encontra arquivado na Biblioteca Nacional de Nápoles. Consta de 74 fólios, divididos em quatro cadernos com 74 receitas, as quais desenham a primeira grande matriz da cozinha portuguesa. E lá surge a primeira receita de pão-de-ló (“pao de llo”), o tal feito apenas de açúcar, água de rosas e amêndoas.


Igualmente Domingos Rodrigues (1680), autor do primeiro livro impresso de cozinha portuguesa, recolhe a mesma receita, mudando apenas o nome para “Pão de Ló de amêndoas”. Num receituário do século XVI surge também, num outro manuscrito, como “Receita de talhadas de assucar rosado de santos com amêndoa”, referência à água de rosas que incorpora. Francisco Borges Henriques chama-lhe por isso “pão de ló de viagem” porque se conservava muito tempo por não ter ovos (originalmente um biscoito ou duas vezes cozido “biscuit”).
E o nome “ló”? O que quer dizer? É um facto que bem poderia ser etimologicamente com Lot, a figura bíblica. Mas parece-nos que etimologicamente “ló” é aqui usado no sentido de vento, outro dos seus significados. De facto, o ar é fundamental para o arejamento da massa na receita original da Infanta Dona Maria. É feita a referência ao “har” (ar) já que era necessário na confeção arejar ao vento. Só no século XVIII, um francês irá para sempre mudar a receita do pão-de-ló original, apesar de a batizar com o mesmo nome - mas de referir que será o mesmo que “bolos de Sabóia”. Em O Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha de Lucas Rigaud (1780), o autor não está com meias medidas e batiza como “pão-de-ló” uma receita do Bolo de Sabóia. E assim ficou, sendo também batizado em português como “pam leve”.


Cozinheiro da mulher de D. Maria I e D. Pedro III, Rigaud era algo presunçoso, mas não há dúvida que é verdadeiramente o primeiro a fazer a resenha de uma cozinha especificamente portuguesa, apresentando, por comparação com o seu antecessor, francos progressos nesse sentido. É igualmente o primeiro a introduzir receituário de bacalhau, descortinando como era um peixe importante na nossa cultura. Aliás, Rigaud considera o livro de Domingos Rodrigues “defeituoso” e mesmo “inútil”, “devendo ser rejeitado completamente”. Esta adjetivação radica no facto de Rigaud ser francês, ter passado por várias cozinhas das cortes europeias e sentir-se por isso com uma visão mais moderna da cozinha (com uso menor de condimentos, por exemplo).  
O Bolo de Sabóia teria sido um apreciado doce que nasceu no século XIV e dos primeiros bolos com o sentido moderno de hoje. Foi inventado em 1358 pelo pasteleiro Yénne para o conde de Sabóia, Amedée VI, que lhe teria pedido a criação de um “bolo leve como uma pluma” para oferecer a Charles IV, seu soberano e imperador. Gemas, açúcar e claras batidas em castelo com um leve véu de farinha tamisada. Exatamente como alguns dos nossos pães-de-ló, apesar de muitos deles não incorporarem claras batidas em neve.
A forma de fazer o bolo era de madeira, mau condutor de calor, para permitir uma cocção suave e a sua leveza. Algo que em alguns conventos se estabeleceu mas com formas de barro. E o forno era a lenha, claro.


Há ainda quem confunda com a “genoise”, mas não tem nada a ver, já que este último bolo é feito com manteiga e as claras não são batidas em castelo, sendo, aliás, um bolo do século XIX. Os ovos misturam-se diretamente com o açúcar inteiros, da mesma forma que o Pan di Spagna, criando um bolo esponjoso, mas que nada tem a ver com o pão-de-ló.
Assim, a teoria de que o pão-de-ló foi levado pelos navegadores portugueses para Espanha não faz sentido, pois nos séculos XV e XVI a versão existente ainda era a de talhadas de amêndoa com açúcar… Rigaud apenas adapta no século XVIII a receita, por isso, o Kasutera não tem grandes bases para ser o pão de ló mas sim talvez o Pan di Spagna, ou Bolo de Castela, igualmente esponjoso, caraterística que o nosso pão de ló não tem. Existe ainda o “Pain de Gênes”, similar, mas desta vez com amêndoa, muito similar à Tarte de Santiago, bolo igualmente de origem sefardita.
Mas o mais interessante é que o nosso pão-de-ló, tal como o conhecemos, deu todas estas voltas até chegar ao que é hoje, com todas as suas declinações regionais. Com mais ou menos ovos, açúcar ou farinha, só com gemas, com ou sem claras batidas em castelo, diferentes tipos de tempos de cocção. Mas sempre sem fermento ou levedura. Hoje é um símbolo português, mas sem dúvida que as contaminações, como sempre em cozinha e doçaria, foram inúmeras para ser o que hoje conhecemos. E a origem não é, assim, conventual, apesar dos conventos terem aproveitado para o recriar, tornando-o ainda mais divinal, sem sombra de dúvidas. Entre os séculos XVIII e XIX, Portugal era o maior produtor de ovos da Europa e a inspiração não faltava para inovar a partir da receita do Bolo de Sabóia.


Obviamente que depois cada convento efetuou mutações consoante a criatividade e especificidade de cada região. E o resultado está à vista. São várias as formas de fazer o bolo. Margaride, Ovar, Arouca, Alfeizerão (antigo Convento de Cós, perto de Alcobaça), de Vizela (bolinhol, de formato retangular e regado com xarope de açúcar), pão-de-ló de Freitas (Amarante, feito com dois tipos de farinha - fécula e farinha de arroz), de Famalicão (Mosteiro de Landim que se bate por mais tempo), pão-de-ló de Mirandela, com limão, de Figueiró dos Vinhos, Alpiarça ou Rio Maior, são múltiplas as versões de um mesmo bolo batizado assim na Idade Média.

O Pão-de-ló de...Margaride

Estamos agora no berço de uma das clássicas versões, a do Pão-de-ló de Margaride. Numa casa de azulejos verde-garrafa, bem no centro de Felgueiras, cuja visita aconselhamos vivamente. Entrar nesta casa é mergulhar numa outra dimensão e recuar dois séculos, já que o lugar onde se faz este delicioso pão-de-ló é exatamente o mesmo do século XIX. Isso mesmo podemos conferir numa velha fotografia tirada em oitocentos. 
Mal subimos a escadaria e entramos na belíssima cozinha, o aroma estonteante da massa a cozer nos fornos a lenha atordoa-nos, enquanto as velhas masseiras batem a compasso, numa espécie de pulsar rítmico do coração. Uma coreografia de mulheres deambula entre açúcar, gemas de ovos e uma leve chuva de farinha num cenário que dava um filme. Os azulejos “bordeaux” revestem os fornos a lenha encimados pelas armas da Casa Real. 
Focamo-nos agora nas largas mesas onde assentam pilhas de formas de barro, forradas a papel almaço, e, sobretudo, nas várias mãos destas doceiras que aqui passaram uma vida. Vestidas de branco, circulam numa dança serena onde o silêncio é apenas quebrado pelo bater compassado das velhas masseiras e as antigas hélices rodam num original sistema datado do século XIX. A única diferença é que, no início, eram manuseadas a força humana, com a ajuda de uma manivela, o que se tornava muito cansativo. Uma “bate” ou masseira recolhe cerca de 11 quilo de massa.
A mistura de gemas e açúcar está a ganhar ar há cerca de 40 minutos, sendo tempo de a observar. “Já está a abrir”, diz uma das doceiras. O termo “abrir” significa que a massa está a revelar bolhas de ar, numa profusão delicada que a torna quase um balão. Leve, diáfana, delicada, é já uma espécie de tecido fino. É agora tempo de receber, em chuva, a farinha peneirada. O ritual da confeção inicia-se às 6h da manhã, altura em que se começa a preparar os fornos a lenha. O herdeiro desta história imemorial é hoje Guilherme Lickford, que começa por partir os ovos, seguindo a tradição, para que a receita se conserve no segredo dos deuses, pois não se encontra escrita. Podemos, contudo, chegar facilmente à sua fórmula de maneira muito aproximada e é isso mesmo que aqui deixamos.
Só para imaginarem os milhões de ovos que neste lugar já foram partidos, apenas um quilo de pão-de-ló integra 22 gemas de ovo, sendo apenas 10% claras, mas não batidas em castelo. Ou seja, 19 gemas e duas claras, cerca de 300 gramas de açúcar e 150 de farinha. Se pensava que eram as claras batidas em castelo que configuravam a textura leve do bolo, desengane-se. É apenas o tempo que edifica esta massa etérea de gemas e açúcar.


Ou seja, numa semana, são descascados cerca de 220 mil ovos. Imagine agora na época da Páscoa, altura em que Guilherme Lickford se vê obrigado a duplicar o número de funcionárias, bem como no Natal.
Uma das mãos mergulha até ao braço na massa alva e parece que assistimos a uma obra de arte. Mais uma vez, é com as mãos em concha, que fazem a vez de colher, que se retira a massa para a colocar nas formas de barro forradas a papel. “Optamos por conservar os procedimentos artesanais, mantendo quase tudo como se fazia de forma original”, conta-nos Guilherme Lickford, enquanto revela que a primeira mulher a fazer este bolo se chamava Clara. Seria ela a ama de Leonor Rosa, enjeitada numa roda do Porto, a transmitir a receita, muito provavelmente oriunda de um convento. Certo é que Leonor Rosa seria a grande obreira da fama do doce, sua grande impulsionadora, chegando à honra máxima de ser “Doceira da Casa Real”. 
A primeira fábrica de pão-de-ló de Margaride, também batizado de “pão leve”, nasceu pelas suas mãos e depois de algumas mudanças assentou no imóvel onde estamos agora. Leonor Rosa, durante mais de 50 anos de trabalho porfiado e inteligente, conseguiu elevar a fama cobiçada deste pão-de-ló ao mais alto nível, tornando-se fornecedora oficial da Casa Real e Ducal Casa de Bragança, por alvará de D. Carlos I dirigido ao Conde de Ficalho, documento datado de 1893, que também aqui se pode ler numa paredes da cozinha. São 300 anos de história que estas paredes contam. Para além do pão-de-ló de Margaride, aqui são também feitas desde sempre as cavacas, exatamente com a mesma massa, mas em formato de biscoito redondo, regado a calda de açúcar, de novo com as mãos e sem qualquer intervenção de colheres.

Do bolo de Sabóia a iguaria conventual

É agora altura de colocar as formas dentro dos enormes fornos de tijolo de burro, ainda atualmente aquecidos com um maçarico bicentenário. “Quando se avaria, é uma dor de cabeça porque ninguém sabe consertar à primeira”, ironiza Guilherme Lickford. Uma chama intensa distribui calor pelo ar dos fornos a lenha até se atingirem os 260 graus e depois é só esperar que os bolos cozam lentamente enquanto a temperatura estabiliza. As formas possuem um pequeno copo virado ao contrário e são tapadas de novo com outra forma para permitir a difusão do calor. Agora aguardamos de novo 45 minutos para que cozam e um aroma a bolo invade a cozinha, deixando-nos literalmente nas nuvens.
Com um cálice de Porto, Vinhos Verdes da região ou espumante, este doce deixa qualquer um saciado, tendo ainda a vantagem de se preservar no tempo, com uma validade maior, até 12 dias. Sendo seco, muito diferente dos de Ovar ou Alfeizerão, húmidos por dentro, não convém, no entanto, exagerar, caso contrário corre o risco de se tornar ressesso. 
Certo é que o pão-de-ló foi, depois do século XVIII, amplamente divulgado entre os conventos. Sabe-se da forte ligação entre a aristocracia e a realeza com os mosteiros. As receitas eram passadas com algum secretismo entre as meninas de famílias abastadas que optavam pela vida monástica. O sucesso do bolo nos conventos radica não só na profusão de ovos e açúcar necessários como do resultado da sua leveza e delicadeza, sabor divinal que tinha tudo para se adaptar à esfera religiosa.


Os conventos terão aproveitado a popularidade do bolo transmitido pela sua proximidade com a família real e a aristocracia, a par do facto de terem em abundância duas das suas matérias-primas fundamentais: ovos e açúcar...  Foi ouro sobre azul. Obviamente que depois adaptaram-no e criaram diferentes fórmulas, já que maioritariamente as claras batidas em castelo entram em grande parte do nosso receituário conventual. Bolo que reconforta, surge não só na Páscoa, mas também no Natal, sendo igualmente oferecido a famílias enlutadas como forma de dar ânimo. Diz-se ainda que era oferecido aos condenados à morte com um copo de Vinho do Porto. A partir de meados do século XVIII, quando foi decretada a extinção das Ordens Religiosas em Portugal, as freiras e monges foram confrontados com a necessidade de angariar dinheiro para seu sustento.


A venda de doces conventuais foi uma das formas encontradas para minimizar a sua situação financeira. Por isso, transmitiam, já fora dos conventos, receitas às mulheres que as acolhiam. Passando de geração em geração, o delicioso receituário de doces conventuais portugueses permanece assim vivo até os dias atuais. 
Foi assim que também surgiu a receita de um dos mais célebres pães-de-ló portugueses: o Pão-de-ló de Margaride, que teve a honra de poder usar as armas ducais da Casa Real, por alvará de D. Carlos. Por carta particular, timbrada com as armas dos Duques de Bragança, recebe em 1888, a honra de ser fornecedora oficial da Casa Real. Nesta época de Páscoa, “ser tratado a pão-de-ló” é mais conveniente que nunca. As opções são múltiplas, mas se quiser fazê-lo em casa, deixamos três versões para experimentar: a original, a “afrancesada” e uma versão que se tornou já num clássico português.