A locomotiva do renascimento

Fotografia: Ricardo Garrido
José João Santos

José João Santos

Os vinhos do Pico figuram hoje entre os mais procurados do país. A oferta fica aquém da procura e os preços acima da média apenas ajudam a valorizar aquilo que não só é um património vivo como também uma jornada de loucos. Mas, foi preciso chegar alguém de fora para que os açorianos percebessem o tesouro incalculável que tinham em mãos. 
Deve-se a António Maçanita e à Azores Wine Company o novo ímpeto que faz renascer do marasmo o “terroir vulcânico”. A história encarregar-se-á de explicar este capítulo do renascimento, impulsionado por protagonistas que já foram apelidados de loucos… E isso, por si só, é já bom prenúncio.

 

TEXTO E NOTAS DE PROVA José João Santos, Nuno Guedes Vaz Pires

É de loucos a paisagem que reencontramos. Junto ao mar e à mercê dos humores impiedosos do Atlântico, com ondulações que em dias mais tempestuosos galgam as margens. Pedra a pedra, há mais de cinco séculos percebeu-se que a forma de proteger a cultura da vinha dos ventos mais agrestes passava por erigir muros de basalto. O trabalho, desde 2004 reconhecido na área protegida de Criação Velha, Madalena do Pico, como património mundial pela UNESCO, foi de loucos. Afinal, se juntássemos todas as pedras de todos os muros da ilha obteríamos uma extensão equivalente a cerca de duas voltas ao Equador…


Os vinhos do Pico há muito estavam interiorizados como algo simplesmente pitoresco, quando muito exótico. Os licorosos que a dado momento ficaram famosos por serem escolhas dos czares russos atravessaram os tempos de modo relativamente impoluto, mas com uma expressão sempre muito residual. Os vinhos tranquilos foram oscilando entre a apatia e o esquecimento e as tentativas de ressurgimento das últimas duas décadas insistiram na adaptação de castas francesas.
Há um nome que dita a mudança de paradigma, Açores Wine Company (AWC). Fundada em abril de 2014 conseguiu num curtíssimo espaço de tempo voltar os holofotes para os vinhos do arquipélago, cavalgando bem a onda internacional que está sedenta por vinhos frescos e tensos, que sejam tudo menos certinhos ou bombas de especiarias. Seguindo o modelo contrário do que se estabelecera no arranque do milénio, procurando implementar castas internacionais de nomeada, a viticultura apostou na reabilitação de vinhas abandonadas, a enologia trouxe para primeira imagem dos rótulos o Terrantez do Pico, o Arinto dos Açores ou mesmo o Saborinho (a Tinta Negra da Madeira).


O virar de página não foi fácil. Aliás, nada é fácil por ali – e esse, acreditem, é um dos muitos encantos dos Açores. No início disseram que seria impossível, que seria uma loucura, desconfiaram das intenções. A verdade é que tiveram que se render às evidências: há 10 anos o Pico tinha em produção cerca de uma centena de hectares; até hoje, a AWC já recuperou 125 hectares de vinhas e a ilha prepara-se para ter em produção um milhar de hectares muito em breve. Quando essa área produtiva estiver operacional, o Pico poderá transformar cerca de dois milhões de quilos de uva por ano.


Se estes dados podem impressionar, outros certamente deixarão muitos boquiabertos. Há uns anos, o quilo de uvas no Pico era pago a 0,70€ aos viticultores; na vindima de 2018, a AWC pagou o Arinto dos Açores a 3,60€/kg, o Verdelho a 4,70€/kg; o Terrantez do Pico a 4,80€/kg! Alguma outra região do país tem uvas a serem pagas aos viticultores a preço que se aproxime?


Certos Velhos do Restelo e propagandistas de desgraças vaticinam que se trata de uma bolha, que a qualquer momento rebentará. No entanto, se os preços estabilizarem e não se cometerem erros escusados o negócio será sustentável a longo prazo, até porque estes são vinhos de nicho, identitários de um lugar único no mundo, que terão que ser comunicados de uma forma sempre muito especial… porque também eles o são.
Denúncias recentes alertaram para algumas ilegalidades e falhas no processo de certificação. Poderão estar a ser comercializados vinhos sob a chancela Açores com uvas que chegam de fora do arquipélago. As autoridades responsáveis prometem ficar vigilantes. Todos os que gostam de vinhos de território assim esperam.

Os três mosqueteiros

António Maçanita é o rosto que mais associamos à AWC. Filho de mãe alentejana e pai açoriano, sublinha a ideia que “ser de Lisboa é ser de lado nenhum”. Quis, por isso, fazer vinho nas regiões de origem dos pais. Fita Preta, no Alentejo, AWC, depois de uma primeira tentativa falhada em 2000 e ainda quando estudava, nos Açores.
Conheceu Filipe Rocha em 2007, numa formação de comida e vinhos na Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada. A dada altura aceitou o desafio de estudar as razões que poderiam explicar o porquê da quase extinção da casta Terrantez do Pico. Viu aí uma segunda oportunidade, estudou e escreveu um protocolo que entregou nos Serviços de Desenvolvimento Agrário de S. Miguel, a defender um ensaio de vinificação da casta. Estávamos em 2010. “O perfil era muito mais do que poderíamos esperar”, confessa. Surpreendido com o resultado e entusiasmado com a aceitação obtida não mais parou.


Devoto da causa, estudou, investigou, voltar a estudar e a investigar. Sabe na ponta da língua o rico historial dos vinhos açorianos, explica com facilidade o mais que provável trajeto de cada casta autóctone e chegou mesmo a escrever um projeto genético, publicado no” Australian Viticulture Journal” que reclama os Açores como o berço mais provável do Verdelho, o culminar de três anos de investigação em parceria com um laboratório.


Em 2013, António Maçanita é convidado por Paulo Machado, da Ínsula Vinus, a produzir um vinho no Pico a partir da casta Arinto dos Açores. Nasce uma amizade e cumplicidade que os leva, no ano seguinte, a constituir a AWC. Cada um dos três mosqueteiros fica com papéis bem definidos: Filipe focado na comercialização; Paulo a esmiuçar a viticultura; António, o autor dos vinhos. De peito aberto aos duelos, tomaram como causa comum recolocar os Açores no mapa de Portugal e do mundo, levando-os para a esfera de onde nunca deverão sair: vinhos de “terroir”, vinhos de nicho.


Pureza e longevidade

A paisagem do Pico mexe connosco. De qualquer ponto (assim a neblina o permita) avistamos sua majestade, o ponto mais alto de Portugal (2.351 metros de altitude). Não se espere, todavia, uma viticultura de montanha. As vinhas mais altas estão somente plantadas entre os 150 a 200 metros acima do nível do mar e não são essas que estão na origem dos melhores vinhos.


A paisagem vinhateira comove. Uma grande franja de vinhas está plantada, por toda a ilha, a escassos metros do mar e as plantas estão protegidas por toscos muros de pedra, testemunhos de estoicidade, bravura e loucura de gerações e gerações. As raízes da vinha espraiam-se por entre as fissuras da rocha-mãe e tantas vezes é possível, pelo meio delas, ir aos poços de maré. Se o mar está lá abaixo, o vento também o transporta por cima, como se fosse um spray contínuo.


Estes solos vulcânicos são muito ricos em potássio (análises demonstram que os vinhos açorianos apresentam, em média, três vezes mais potássio que os vinhos continentais) e estão na base de vinhos marcadamente iodados, salinos, por vezes a lembrar notas de sal seco –
imagine-se um Alvarinho bem texturado, com grande acidez e uma componente salina muito acentuada.
As vinhas do Pico encontram-se sob o regime de proteção integrada e António Maçanita garante que não há recurso a quantidades suplementares de herbicidas, uma suspeita recentemente lançada a público.


“O uso de glifosato nas vinhas do Pico é praticamente impossível e por uma razão muito simples: é um herbicida sistémico que ataca a planta, matando-a. Funciona nas vinhas tradicionais porque se aplica no chão e a vinha tem porte aéreo. É fácil perceber-se que não se pode fazer isso aqui. Se durante a altura de folha se aplica no chão, onde está a vinha, ela morre. Além disso, no inverno os gomos estão sempre inchados, não há uma verdadeira dormência (da planta) nos Açores, nunca há frio suficiente para que a planta puxe a seiva toda para a raiz e deixe de estar com os gomos inchados. Por isso é que a poda só acontece em março, para se evitar que rebente antes disso”, explica. O enólogo e produtor salienta que todos os estudos feitos nos Açores não revelam qualquer contaminação ao contrário do que acontece noutras regiões e em análises feitas a diferentes vinhos não há registo de produtos fitofármacos. Insiste num outro detalhe: não é possível a mecanização, o trator por ali é a força humana.


Nos brancos, o Arinto dos Açores é a casta todo o terreno, com perfil de elevada acidez. O Verdelho, segunda casta mais plantada, gosta de exibir perfume, enquanto o Terrantez do Pico é mais floral mas envelhece bem.
“Fazer vinhos no Pico não é dobrar, é entender. São vinhos puros”, diz António Maçanita.
Tivemos oportunidade de captar todo o potencial destes vinhos, através de uma prova vertical com mais de 20 vinhos, entre exemplaress que ainda não chegaram ao mercado e outros que comprovam o potencial de envelhecimento, como o Terrantez do Pico 2010, bem vivo e de grande nível.
Nos tintos a surpresa maior chegou com o Saborinho, traduzido num vinho profundamente elegante, fresco e fino, a lembrar um bom Pinot Noir. Há depois a excentricidade de A Proibida, que nos remete os sentidos para os vinhos de cheiro. Exótico, é elaborado a partir de vinhas velhas de mistura onde também se encontrará Isabella, uva híbrida americana resistente à filoxera.

Novos investimentos

Até ao final do ano, a AWC verá mais um sonho tornado realidade. Inserida numa área de oito hectares de vinha, adquirida pela empresa na paisagem classificada do Pico, entrará em funcionamento a nova adega. São 2.000 metros quadrados de obra, um investimento de 2,9 milhões de euros. A estrutura cuidadosamente integrada no rendilhado de currais terá capacidade para vinificar até 250.000 garrafas/ano, disponibilizando também uma sala de provas, sala de eventos e seis apartamentos turísticos (cinco de tipologia T0, um T2).


O projeto arquitetónico tem assinatura dos portugueses Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira (ateliê Sami) e da dupla britânica Daniel Rosbottom e David Howarth (DRDH). A Revista de Vinhos acompanhou a cerimónia, muito concorrida, de lançamento da primeira pedra, presidida pelo líder do Governo Regional dos Açores, Vasco Cordeiro.


Bem perto da nova adega, em Bandeiras, proximidades do aeroporto do Pico, a AWC recuperou uma outra área. Cinquenta hectares de plantações abandonadas, com trabalhos de limpeza de mata e reconstrução de muros (currais). Terrantez do Pico, Arinto dos Açores e Verdelho, a que se juntam numa parte mais alta algumas variedades tintas, sobretudo Saborinho. A médio prazo pensam vender pequenas parcelas nesta zona a quem quiser ali construir um alojamento de férias e, porque não, elaborar vinho.


Na zona norte da ilha, na Baía de Canas, a produção há muito está referenciada. Uma erupção, em 1562, dizimou o cultivo mas a teimosia dos locais voltou a ditar o plantio com sucesso, embora os ataques de oídio e da filoxera, no século XIX, tenham ditado nova destruição.
De então para cá, a área, mais uma debruçada sobre o mar, esteve abandonada. Até agora. Paulo Machado fala-nos dos trabalhos de resgate dos terrenos de cultivo que entretanto foram tomados pela floresta e foca um ponto não menos importante: a reconstrução dos currais que o tempo danificou. Nesta zona do Pico, mais abrigada do vento e onde as temperaturas são também mais altas no verão, será plantado o trio de castas brancas (Verdelho, Arinto dos Açores e Terrantez do Pico) e tintas (Saborinho, Bastardo e Rufete). 

Espírito de partilha

À irreverência, inquietude e empreendedorismo, a AWC alia o espírito de união. Consciente de se ter afirmado como uma espécie de locomotiva do renascimento, tem convidado outros produtores do Pico a juntarem-se em ações de promoção e em provas. Durante a nossa visita tivemos oportunidade de provar vários vinhos de produtores como a Cooperativa Vitivinícola do Pico, Czar, Curral de Atlântis e Adega “A Buraca” num único momento. Juntos continuam a ser pequenos, mas não menos verdade é que apenas juntos conseguem uma maior projeção.
“O nosso desígnio é tornar esta paisagem rentável. Por isso, os vinhos terão que ser necessariamente caros”, responde-nos António Maçanita quando confrontado com a questão de os vinhos do Pico estarem a ser vendidos a preços mais elevados do que estaríamos à espera em Portugal. Mas, se refletirmos bem, a mais pura das verdades é que os vinhos portugueses continuam, genericamente falando, a ser vendidos a preços inferiores ao que merecem. O Pico está a optar pel o caminho do nicho, do “terroir”. E em muitos casos será por aí que se obterá uma maior valorização. Aqui e além-mar.

 



18,5
Vinha Centenária 2016
IG Açores / Branco / Azores Wine Company

Lote maioritário de Arinto (85%) complementado por Verdelho, Malvasia e Alicante Branco. Amarelo cintilante. A fermentação malolática sente-se nos aromas, a que se juntam apontamentos de restolho e de iodo. Bastante untuoso na boca mas sempre fresco, volumoso mas sempre elegante. O final é demorado e marcante. Um grande vinho branco, com pergaminhos para evoluir por longos anos. JJS / NGVP
Consumo: 2019-2026 / 75,00€ / 11ºC

18
Sabor(z)inho by António Maçanita 2015
IG Açores / Tinto / Azores Wine Company

Cor a tender para granada. Nariz silvestre elegante, nota de mirtilo e de pimenta preta. Apresenta finura e elegância que não são fáceis de alcançar, a lembrar um grande Pinot Noir. Muito fresco e apelativo, uma delícia de vinho! Foram produzidas apenas 600 garrafas. JJS / NGVP
Consumo: 2019-2024 / 100,00€ / 16ºC

17,5 
Arinto dos Açores Sur Lies by António Maçanita 2017
DO Pico / Branco / Azores Wine Company

Dourado. Notas de fruto branco de caroço, querosene e algum iodo. Tenso e com fibra, surge mais espevitado e salino na boca. Finaliza longo e tem outra característica que só o valoriza: promete evolução. JJS / NGVP
Consumo: 2019 – 2030 / 36,00 € / 14ºC

17,5
Verdelho 10 Anos
D.O. Pico / Fortificado / Azores Wine Company

Será lançado em 2019, em data ainda a definir. Âmbar. Notas de melaço, pêssego, tâmara, amêndoa torrada, toque de querosene. Seco e tenso, de acidez marcante e muito equilíbrio entre caramelizados e iodo. O melhor elogio? Lembra um bom Madeira. JJS/NGVP
Consumo: 2019 – 2030 / € não definido / 14ºC

17,5
Terrantez do Pico by António Maçanita 2017
IG Açores / Branco / Azores Wine Company

Tons amarelo limão. Nariz de lima e alguma tropicalidade, sempre sob uma manta salina com toques de pedra molhada. A acidez é enorme, a estrutura é tensa e o final projeta-se bem longe. Tem tudo para evoluir bem. JJS/NGV
Consumo: 2019 – 2026 / 45,00 € / 11ºC

17,5
Arinto dos Açores by António Maçanita 2017
DO Pico / Branco / Azores Wine Company

Amarelo moderado, frescura, assinatura mineral imediata, fruto de caroço e limonado. Estrutura sólida na boca, suculento e salino, vibrante de acidez, profundo e de enorme persistência. GC (provado na ed. 348)
Consumo: 2018-2025 / 21,50 € / 11ºC

17
Da Pedra Se Fez Espumante
IVV / Espumante / Azores Wine Company

Espumante da casta Arinto, com 481 garrafas ainda sem data de lançamento. Amarelo. Bolha fina e nariz elegante, sobretudo salino e com breve tosta. O iodo perceciona-se também na boca, sendo fresco, revelando boa acidez e final persistente. Uma boa estreia no capítulo das borbulhas. JJS/ NGVP
Consumo: 2019 - 2023 / € não definido / 8ºC

16,5
A Proibida by António Maçanita 2016
IVV / Tinto / Azores Wine Company

Rubi aberto. Nariz de morango e gelatina de morango, uma nota vegetal e outra que nos lembra uva acabada de pisar. É uma explosão de fruta na boca e consegue manter-se fresco. Diferente e exótico, remete-nos para o universo dos vinhos de cheiro. Vale a pena provar e aconselhamos que seja bebido ligeiramente mais fresco. JJS/NGVP
Consumo: 2019-2021 / 17,50€ / 14ºC

16,5
Tinto Vulcânico 2015
IG Açores / Tinto / Azores Wine Company

Lote de várias castas: Aragonês, Agronómica, Castelão, Malvarisco, Merlot, Syrah, Touriga Nacional, Saborinho. Quase granada. Nota de pimento verde, alguma groselha e mirtilo. Na boca percecionamos especiaria. O final é fresco, com boa acidez. JJS/ NGVP
Consumo: 2019-2024 / 15,00€ / 16ºC

16,5
Verdelho dos Açores by António Maçanita 2017
IG Açores / Branco / Azores Wine Company

Amarelo limão. Salino, lembra maresia e tem ainda uma nota de palha seca. Na boca é fresco, possui acidez equilibrada e alia um lado cítrico que apraz. Finaliza muito bem. JJS/NGVP
Consumo: 2019 – 2024 / 22,50 € / 11ºC