Vinhos Naturais - Uma questão de filosofia

Fotografia: Fotos D.R.
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

Goste-se ou não dos vinhos naturais, a realidade é que eles estão, de facto, na moda. O que não deixa de ser curioso. Olhar para trás, para o que era feito antigamente, e lá encontrar o caminho da modernidade, pode parecer um contrassenso. Mas é exatamente isso que ocorre. E num mundo onde as pessoas procuram cada vez mais informações sobre o que comem e de onde vem essa comida, nada mais normal do que a extensão dessa preocupação ao que se bebe. Inegavelmente, nesta questão, os “naturais” enchem o peito e abrem espaço, com orgulho.

 

 

No rigor da definição, vinho nada mais é do que mosto de uva fermentado. No entanto, há muito mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. No caso do vinho, entre a parra e a garrafa, há muito mais do que apenas a ação das leveduras (indígenas, de preferência). Há a terra, o solo, o clima, o meio-ambiente. E há o homem, o maior predador do planeta. É para ele, e por causa dele, que o vinho é feito. Sem a intervenção do homem, não haveria vinho. Portanto, não existe vinho sem intervenção. 


Dito isso, voltemos ao início. Não apenas do texto. Mas do vinho. No começo, o vinho era natural. Era muito próximo à definição inicial: mosto de uva fermentado. Não existia tecnologia nem aditivos químicos, nem adição de leveduras, vitaminas, enzimas, nem acidificações ou correções, tão-pouco controlos de temperatura, micro-oxigenação, extração a frio, taninos em pó, chips de madeira e outras tantas possibilidades enológicas comuns aos tempos correntes. Era, na ocasião, apenas o reflexo da equação: ano+ clima + solo + meio ambiente + homem = vinho. Era natural. 


Ao longo do tempo, o homem, este ser naturalmente controlador e por vezes irracionalmente racional, passou a controlar (ou pelo menos a tentar) todas as etapas da produção, numa busca ingrata e impossível pela “perfeição”. E a química, com o auxílio luxuoso da tecnologia, entrou literalmente em (e no) campo. Pouco sobrou para a natureza fazer. Estava pavimentado o caminho do vinho tecnológico, convencional ou “industrial”. Ou, ainda, globalizado. 


No entanto, cada ação provoca uma reação. E alguns produtores mundo fora, sem que houvesse uma coordenação – ou melhor, um movimento coordenado –  passaram a procurar alternativas. Ideias como uma melhor conetividade com a terra e todas as imperfeições que dela possam derivar. Era a busca pela pureza. Teorias como a do austríaco Rudolf Steiner, pai da biodinâmica, serviram como inspiração. Mas o movimento do vinho natural tem muito mais a ver com o questionar do papel do homem na produção do vinho do que apenas no cumprimento de regras de agricultura pré-estabelecidas. Como muito bem diz o produtor francês Alexandre Bain, “a agricultura orgânica e a biodinâmica são as ferramentas, o vinho natural é a filosofia”. 


E exemplos como Jules Chauvet, Nicolas Joly, Marcel Lapierre, Pierre Overnoy, Josko Gravner e outros foram sendo seguidos ao longo dos últimos tempos. Até que, nesta década atual em que vivemos, a coisa explodiu. Em mercados como Nova Iorque, Londres e Tóquio, a procura por vinhos naturais é cada vez maior. E não é diferente, nem em Portugal nem no Brasil, por exemplo. 
O número de produtores locais, distribuidores, importadores e sommeliers interessados neste tipo de vinho só tem aumentado nos últimos tempos. E, evidentemente, quando algo passa a estar em foco torna-se num alvo. 

 

Natural, não necessariamente melhor

O vinho natural não é exceção. Os detratores costumam dizer que “natural costuma ser desculpa para má vinificação”. “Os amantes do vinho natural costumam ser bem tolerantes a defeitos e imperfeições que nada têm a ver com o ´terroir´ ou com uma boa vinificação”, alfinetou o Master of Wine inglês Tim Atkins, num texto que recentemente publicou no blog pessoal.


O simples facto de um vinho ser natural não quer dizer que seja necessariamente melhor do que um outro, feito pelo método convencional. Há vinhos naturais excelentes, ótimos, bons, razoáveis, ruins e péssimos. E, realmente, algumas “imperfeições” ou “defeitos” podem sim ser associados a alguns vinhos deste tipo. Mas aí, podemos abrir um novo debate: “Até que ponto o vinho tem que ser perfeito?”. Mais ainda: o que é a “perfeição” num vinho? 
O produtor Paul Old, do Les Clos Perdus, do Languedoc, França, costuma dizer que “fazer grandes vinhos é namorar com os erros”. Pode ser. Mas, é verdade que alguns amantes dos “naturais” parecem não ligar a defeitos ou imperfeições que nada têm a ver com o lugar de onde os vinhos vêm, antes com equívocos na vinificação (volátil extremamente alta, contaminações, falta de equilíbrio) ou falta de qualidade das uvas e, de forma quase religiosa, defendem vinhos medíocres com o simples argumento de que “se é natural, é bom”. 


Não é bem assim que a banda toca. Há que saber separar o trigo do joio. E a radicalização do discurso não faz bem ao debate. Nicolas Joly costuma dizer que “para fazer um vinho com pouca intervenção na adega é necessário ser quase um Michelangelo na vinha. Tudo de errado que se trouxer da vinha será amplificado na adega”. Tem toda razão. 


Há outros pontos que também precisam ser debatidos. Não existe nenhuma regulamentação internacional que defina o que é vinho natural ou que estabeleça parâmetros e limites de, por exemplo, quantos sulfitos podem ser adicionados na hora do engarrafamento. É unânime entre os produtores deste tipo de vinho que, no caso específico do SO2, menos é mais. Para que se tenha uma ideia, na Inglaterra o limite permitido pelo governo para a quantidade de sulfitos num vinho é de 150mg/litro para os tintos,  200mg/lt. para os brancos e 400mg/lt. para os doces. Raramente os vinhos naturais passam de 30mg/lt. para os tintos, 40mg/lt. para os brancos e 80mg/lt. para os doces. Vale a pena lembrar que os sulfitos (anidrido sulfuroso ou SO2) é o conservante do vinho. Mas em excesso, faz mal à saúde.


A questão vai muito além da quantidade de sulfitos adicionada ao vinho. Embora não haja uma legislação específica que defina os padrões do que possa ser chamado “vinho natural”, algumas práticas são comuns aos produtores que abraçaram esta filosofia. No campo, as produções são sempre pequenas, a colheita é manual, os rendimentos na vinha são baixos e a agricultura é biológica. Na adega, não se adicionam leveduras nem bactérias, não se faz colagens, filtragens ou clarificações, não é utilizado nenhum tipo de produto enológico sintético, não se corrige a acidez, técnicas como osmose reversa e micro-oxigenação não são permitidas. Alguns produtores nem sequer fazem controlo de temperatura nas fermentações. Mesmo assim, para os mais céticos talvez apenas com acreditação de algum órgão fiscalizador se possa realmente saber quem de facto faz vinho natural ou quem cavalga a onda em busca de vantagens comerciais. 

 

O movimento “natural” português


Em Portugal, o movimento tem crescido em progressão geométrica. E bons produtores como Vasco Croft (Aphros), António Marques da Cruz (Quinta da Serradinha), Fernando Paiva (Quinta da Palmirinha), Pedro Marques (Vale da Capucha), Pedro Ribeiro (Bojador), Rodrigo Filipe (Quinta do Paço - Humus), Tiago Teles, entre outros, pedem passagem com vinhos repletos de personalidade, energia e eletricidade e – principalmente – muito bem feitos. E mesmo gente grande, como o sempre inovador Dirk Niepoort, abraçou a causa, criando um movimento que visa justamente dar ainda mais visibilidade a este tipo de vinho, o Nat'Cool. 


No Brasil, mesmo que em menor escala, alguns produtores também procuram o caminho do vinho natural. E exemplos como o de Marina Santos (Vinha Unna), Maurício Voigt (Serena) e o trio Luis Henrique Zanini, Álvaro Escher e Pedro Hermeto (Era dos Ventos) fazem barulho e conquistam espaço nas cartas de vinho de alguns dos mais importantes restaurantes do país. 


Goste-se ou não dos vinhos naturais, a realidade é que eles estão, de facto, na moda. O que não deixa de ser curioso. Olhar para trás, para o que era feito antigamente, e lá encontrar o caminho da modernidade, pode parecer um contrassenso. Mas é exatamente isso que ocorre. E num mundo onde as pessoas procuram cada vez mais informações sobre o que comem e de onde vem essa comida, nada mais normal do que a extensão dessa preocupação ao que se bebe. Inegavelmente, nesta questão, os “naturais” enchem o peito e abrem espaço, com orgulho. E é bom ressaltar: a ascensão deste tipo de vinho não significa necessariamente o declínio do estilo mais convencional. Pelo contrário. Talvez este minimalismo enológico sirva como fonte de inspiração para transformações, incluindo nas adegas das grandes empresas. E mesmo que não seja assim, ganha sempre o consumidor, que tem nas prateleiras e nas cartas de vinho novas opções de estilos. 
Eu, que cada vez mais me interesso em provar os “naturais”, sinto neste tipo de vinho, quando é bom, uma energia, uma vibração e uma pureza diferentes. Mas nem todos precisam pensar assim. Afinal, muitas vezes o vinho não é uma questão de enologia, mas de filosofia. 

 

Artigo publicado na edição nº 338, de Janeiro de 2018, da Revista de Vinhos.