O que será realmente “artesanal”?...

Nos Estados Unidos, as vendas de cerveja artesanal estão a crescer muito mais dramaticamente do que as do vinho, mais de 20%...

Estou um pouco irritada. Irritada em relação à palavra “artesanal”. Como é que todas essas cervejas e bebidas espirituosas de nicho atraem a palavra artesanal como um prefixo que lhes confere mérito artesão, enquanto ninguém fala em vinho artesanal?

Diria que bem mais de 90% dos vinhos sobre os quais escrevo se qualificariam como vinho artesanal, tendo em conta que são produzidos em escala relativamente pequena; produtores independentes que colocam o coração e a alma na forma como os vinhos são desenvolvidos e produzidos, todos sendo essencialmente definidos pelas condições locais e por um único ingrediente: uvas. Não tenho conhecimento de algum fabricante de cerveja artesanal ou destilador que cultive todos os ingredientes.

Além disso existe um ponto muito importante, no qual a produção de vinho é muito menos industrial que o fabrico de cerveja ou a destilação: a natureza genuinamente finita do quanto é produzido. Se os cervejeiros e destiladores artesanais ficarem sem stock, podem apenas fazer um pouco mais – e a cerveja e as bebidas espirituosas são muito, muito mais rápidas de produzir do que o vinho. Mas o viticultor e o enólogo têm apenas uma produção por ano, o volume definido pela superfície da vinha, pelo que é plantado naquela terra (um compromisso que normalmente é feito por décadas) e as vicissitudes de uma única estação de cultivo, culminando com a vindima, no outono.

Se soar um tanto queixosa poderá ser porque, como entusiasta do vinho ao longo da vida, estou a sentir-me cada vez mais sob ameaça. Nos Estados Unidos, as vendas de cerveja artesanal estão a crescer muito mais dramaticamente do que as do vinho – mais de 20%, segundo a Nielsen. E, com base nas Ilhas Britânicas, estou a ficar cada vez mais consciente de que o espaço do vinho está a ser invadido por outras bebidas, especialmente cerveja artesanal, bebidas espirituosas artesanais e cocktails.

Isto teve início no “Kerrygold Ballymaloe Listerary Festival of Food and Wine” do ano passado, na Irlanda do Sul, quando um dos oradores mais divertidos era Garrett Oliver, editor do livro “The Oxford Companion to Beer” e um dos líderes do cada vez mais poderoso e bem-sucedido movimento da cerveja artesanal. Ele não poderia ter sido mais frio e esteve efetivamente a difamar o vinho, explicando como era altura de o sumo de uva fermentado mover-se e abrir caminho para a cevada maltada fermentada.

Já este ano conheci as irmãs Boyle, mulheres glamorosas na casa dos 30. Elas são grandes fãs de vinho e muito conhecedoras do assunto. Mas também são fabricantes de cerveja. Susan e Judith Boyle foram criadas num pub e agora produzem Brigid’s Ale – nomeado para santo padroeiro cervejeiro – , a partir de ingredientes estritamente locais, no nativo Condado de Kildare.

Em meados dos anos 80 havia apenas cinco grandes cervejarias na Irlanda. Hoje existem mais de 60, a maioria pequenas e geridas por hipsters ou, pelo menos, por jovens entusiastas. Este florescimento de interesse reflete-se também no negócio das bebidas espirituosas, com a proliferação de destilarias na Ilha Esmeralda (é certo que toda esta atividade é encorajada pelo facto de a Irlanda ser muito fria para a viticultura.)

A carreira de Susan Boyle começou na universidade, onde se apaixonou pelo vinho. Formou-se como atriz e está agora em digressão com um espetáculo chamado “The Takes of Ales”. Perguntei-lhe se havia tensão entre as fações do vinho e da cerveja, na Irlanda. Ela alega que não, “porque o vinho irlandês não existe”, mas como amante de vinho bem viajada é rápida a salientar que “os viticultores australianos e neozelandeses não poderiam existir sem a cerveja”.

Um destaque do último ano foi um jantar em Dublin, com a curadoria de Garrett Oliver, que apresentou algumas cervejas não comerciais bastante especiais, produzidas através da maturação em diferentes borras, vinho e sidra, por exemplo.

Claro que não tem de haver necessariamente um conflito entre o vinho e as chamadas cervejas e bebidas espirituosas artesanais. Na verdade, existe uma pequena tendência entre os produtores de vinho para começarem a fabricar cerveja e, por vezes, também a destilar. Mas o facto é que existem apenas tantas bebidas alcoólicas como as que cada consumidor pode, ou pelo menos deveria, beber.

 

Utilização abusiva?...

 

O meu amigo Dave Broom, um aclamado escritor britânico, é agora especializado em bebidas espirituosas – mas apenas depois de desejar produzir vinho no rio Margaret e finalmente perceber que seria mais fácil ganhar a vida no muito menos povoado campo de pontificar sobre a “strong stuff”. Perguntei-lhe o que pensava acerca da crescente competição entre o vinho, a cerveja e as bebidas espirituosas artesanais, o que no comércio é chamado de ”share of throat”. Ele disse-me: “Não acredito que o vinho se esteja a tornar menos cool. Em vez disso, acho que a cerveja e as bebidas espirituosas estão a aprender algumas lições com o vinho e estão agora a utilizar algumas das mesmas dicas. O movimento começou nos Estados Unidos com a ascensão da cerveja artesanal, muito mais uma reação contra a cerveja ersatz que as cervejarias massivas estavam a bombar. Com o tempo, isto expandiu-se para as bebidas espirituosas – muitos dos destiladores artesanais são ex-cervejeiros. Alguns são também viticultores. O movimento das bebidas espirituosas, no entanto, foi menos ´anti grande marca´ e mais uma tentativa de alargar a oferta. Isto já se espalhou por todo o mundo”.

Mas, tal como eu, ele está magoado com a má utilização do termo “artesanal”, que para muito consumidores associa-se exclusivamente a alta qualidade, comparativamente a uma escala pequena e de relativa obscuridade. “Existe um elemento de ‘as novas roupas do imperador’ na utilização do termo ‘artesanal’, tanto no que diz respeito à cerveja como às bebidas espirituosas”, segundo Broom. Inicialmente, as pessoas aderem ao conceito e recusam-se a usar as capacidades críticas porque a história é demasiado boa. Julgo que estamos agora na fase em que os consumidores estão a olhar para os produtos ‘artesanais’ e a perguntar-se a si mesmos ´isto vale realmente o dobro de uma marca já existente´?”.

Para mim é dado adquirido que muitas das famosas bebidas espirituosas, mesmo aquelas produzidas em quantidades substanciais, são o resultado de ingredientes e experiências que dificilmente poderiam ser melhorados em qualquer lado e certamente não por uma indústria artesanal.

Mas é difícil pensar num vinho de realmente grande volume que seja tão bom como as dezenas de milhares de pequena escala, versões “artesanais”. O primeiro cultivo de Bordéus tinto pode ser produzido em volumes surpreendentes – talvez 40.000 caixas de 12 garrafas por ano no Château Lafite, por exemplo – e tornou-se de forma justificada, embora lamentável, num verdadeiro produto de luxo. Mas as marcas realmente voltadas para o mercado de massas –  como a Yellow Tail, a Gallo e a Blossom Hill – não são artesanais, mas sim verdadeiros produtos industriais que vendem milhões de caixas de 12 garrafas cada ano.

É notável e, para mim triste, que a segunda maior empresa de vinhos do mundo, a Constellation Brands – que tem sempre estado reconhecidamente envolvida numa ampla gama de bebidas e não apenas no vinho – tenha anunciado recentemente que está a mudar o foco: do vinho para a cerveja.

 

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