Vinhos doces sem preconceitos

Parece-me injusto que o vinho branco doce de Bordéus seja tão mais difícil de vender do que o homólogo tinto. Isto quando a produtividade média em Sauternes pode ser quatro a cinco vezes inferior à dos vinhos tintos.

Não há muitas coisas que me deixem triste no que diz respeito a vinho, mas a atitude habitual dos consumidores em relação aos vinhos doces, deixa. Um bom vinho doce é, provavelmente, o vinho mais difícil e caro de produzir no mundo e, ainda assim, muitos torcem o nariz perante a ideia de doçura no vinho.

Habitualmente, acontece porque apenas provaram vinhos doces de fraca qualidade, que devem a doçura ao sumo de uva não fermentado que é adicionado. Ou então provaram apenas vinhos comerciais muito comuns, de todas as cores, aos quais é adicionada alguma doçura para os tornar mais agradáveis. E, à medida que vão aprendendo mais sobre vinho, são também ensinados a ser pretensiosos em relação a qualquer vinho que não seja considerado “seco” (embora muito açúcar possa estar lá, de facto).

A dinâmica crucial nos vinhos doces é o equilíbrio entre a doçura e a acidez. A elevação do vinho em açúcar não fermentado necessita de muita acidez para contrabalançar e impedi-lo de ter um sabor adocicado. Pode fazer-se bom vinho doce a partir de uvas que congelaram na vinha, de forma a que tanto o açúcar da uva como a acidez natural estejam concentrados no sumo conseguido a partir delas – deixando a água congelada para trás.

Ou, num bom clima sem chuva de outono, podem simplesmente deixar-se as uvas na vinha, cortando por vezes as canas das videiras de forma a que as uvas murchem e a água se evapore. Se houver risco de chuva podem escolher-se as uvas e secá-las dentro de casa, pendurando-as através das vigas numa câmara bem arejada ou, mais vulgarmente, em tabuleiros rasos. Estes vinhos de uvas secas datam da Antiguidade e ainda são feitos por toda a Itália e Grécia. Os Amarones ricos, que praticamente tomaram conta da produção de vinho tinto na região de Valpolicella, são feitos aproveitando esta técnica.

Mas a maneira mais intrigante, cara e morosa de fazer vinho doce é a partir de uvas totalmente maduras afetadas pelo mofo cinzento, de aspeto repugnante, conhecido também como botrytis (cinerea) e podridão nobre. Este fungo precisa, alternadamente, de sol e humidade (chuvas ou orvalho) e é bastante exigente em relação ao local e ao momento em que se prolifera.  Os maiores produtores das comunas de vinho branco doce de Sauternes e Barsac, em Bordéus, podem ter de enviar vindimadores para um simples vinhedo até dez vezes, colhendo apenas cachos selecionados ou, frequentemente, bagas selecionadas. Muitas vezes têm de ser limpas e descartadas quaisquer bagas que tenham sido afetadas pela forma ignóbil de botrytis, a podridão cinzenta, que literalmente apodrece em vez de concentrar as uvas.

Cada lote de uvas – Sémillon com algum Sauvignon Blanc – precisa ser processado e prensado separadamente, sendo incrivelmente trabalhoso e muito mais caro do que fazer um vinho tinto Bordéus. Por isso é que me parece tão injusto que o vinho branco doce Bordéus seja tão mais difícil de vender do que o homólogo tinto. A equipa por detrás do Ch Lafite, por exemplo, tem por hábito agrupar caixas do Sauternes Ch Rieussec com encomendas de Lafite. Isto quando a produtividade média em Sauternes pode ser tão reduzida como 10 hl/ha; para os vinhos tintos é suscetível de ser quatro ou cinco vezes mais elevada.

Talvez o problema seja a perceção geral de que o açúcar não é saudável (embora os wine lovers tendam a consumir grandes quantidades de açúcar fermentado sob a forma de álcool, de qualquer maneira) e que os vinhos doces devem ser bebidos apenas no final de uma refeição.

 

Grandes vinhos doces

 

Uma vez almocei em Ch d’Yquem, a mais famosa (e maior) propriedade de Sauternes, com o proprietário de então, Alexandre de Lur-Saluces. Ele deixou clara a opinião acerca da versatilidade do seu vinho doce na mesa, ao servi-lo durante toda a refeição: vários vintages com uma torta de cebola, frango com molho intenso, Roquefort e uma sobremesa de fruta. Só de pensar nas glórias deste líquido dourado apetece-me levantar da secretária e encontrar imediatamente uma meia garrafa.

A obtenção desta propriedade familiar, desde a família Lur-Saluces até ao conglomerado luxuoso LVMH, é agora uma memória amarga para Alexandre e para o filho, Philippe, que concentram neste momento as energias noutra propriedade de Sauternes, Ch de Fargues. Philippe é um orador divertido, ainda esperançoso - como o pai, quando o conheci há 35 anos – acreditando que, um destes dias, os vinhos doces vão estar outra vez na moda, tal como tantas vezes estiveram no passado. “Pode-se estragar Sauternes com carnes vermelhas e vegetais verdes”, admite Philippe, “mas nos restantes casos, está ok: carnes brancas e marisco ficam ótimas com os nossos vinhos e qualquer coisa que se possa cozinhar doce e ácida. Ou podem beber-se como aperitivo. E são ótimos com ostras”.

Mas, muito mais caros até que o Ch d’Yquem, são os mais valiosos vinhos alemães provenientes de uvas atacadas por botrytis – particularmente os mais raros Riesling Trockenbeerenauslen de Egon Müller, da região de Saar, um tributário de Mosel. De acordo com a lista dos 50 vinhos mais caros do mundo, da “Winesearcher.com’s”, apenas domaine Romanée-Conti é mais caro, com o preço médio de um Egon Müller Scharzhofberg TBA a rondar mais de 8.000€/garrafa. Ao contrário dos homólogos feitos nas margens do Reno, os vinhos Mosel afetados pela podridão nobre datam apenas a partir de 1921, ano em que o pai de Egon produziu o primeiro TBA, a partir da famosa vinha Scharzhofberg. Teve de esperar até 1971 para que as uvas estivessem suficientemente afetadas pelo bolor nobre para resultar num segundo TBA. Versões seguiram-se em 1975, 1976, 1989 e 1990. “Hoje em dia, graças ao aquecimento global, fazemos um TBA de dois em dois anos, mais ou menos”, afirma Egon Müller, acrescentando de forma desarmante, “mas eles são ainda tão raros (em 1990 foram feitos apenas 120 litros de TBA) que todos os querem. Se colocarmos TBA no rótulo, vendemo-los facilmente.”

A região com a mais longa tradição documentada de produção de vinhos afetados pela botrytis é Tokaj, no noroeste da Hungria, onde estes datam de, pelo menos, meados do século XVII. Mas, do outro lado da fronteira com a Áustria, nas margens do lago raso Neusiedlersee, em Burgenland, existe talvez a maior concentração de vinho afetado pela botrytis no mundo. As neblinas matinais fora do lago promovem a propagação da podridão nobre, que é tão predominante e estável que Gerhard Kracher rotineiramente produz cerca de dez diferentes TBAs todos os anos, numerados para indicar a doçura crescente. Mas o mais extraordinário é que o mundo apenas tomou conhecimento deles há relativamente pouco tempo.

O avô de Gerhard, Alois, foi um talentoso viticultor que fundou a casa apenas em 1958. Foi o excecional filho enólogo, outro Alois, que viu nas vinhas do pai potencial para a produção de vinho afetado pela botrytis. A partir dos anos 80 promoveu uma campanha para alertar o mundo para estes tesouros deliciosos da Burgenland, produzidos a partir de castas como Welschriesling, Scheurebe e Chardonnay. Lembro-me quando veio a Londres, no início dos anos 80, para, de forma desafiadora, mostrar uma gama deles ao lado do Ch d’Yquem. Podem não durar tantas décadas como Yquem, mas são gloriosos por muitos, muitos anos.

E depois há o inesperado pocket de botrytis na monótona e irrigada região interior de Griffith, em Nova Gales do Sul onde, em 1982, Deen De Bortoli conseguiu transformar os excedentes de uvas sobreamadurecidas Sémillon no que é agora considerado o icónico branco doce Noble One – talvez a melhor opção entre os vinhos afetados por botrytis no mundo. Experimente-o, por favor, ou qualquer vinho doce… sem preconceitos.

 

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