Em viagem por Rioja

Fotografia: Fotos D.R.

Entre Elciego e Samaniego, na sub-região de Rioja – Alavessa, encontram-se alguns dos mais prestigiados produtores de vinho de Rioja. Andámos pela região, entre vinhedos a perder de vista, adegas futurísticas e medievais.


 
Saímos de Bilbau com um tempo chuvoso, nada de especial se tivermos em conta que estamos numa das zonas de maior de pluviosidade de Espanha. “Adoro o Verão no País Basco. É o meu dia favorito do ano” brinca Unay, o nosso guia, recorrendo a uma piada local. Porém, avisa: “Após atravessarmos o Parque Nacional de Gorbeiako, o sol aparece”. Passam poucos minutos das 8h00. O ensonado grupo de jornalistas que segue no carro não está muito crente, mas as previsões meteorológicas do guia verificam-se por volta do Km 49. Rodamos há meia hora e ainda faltam uns 50 minutos para chegarmos à primeira paragem na nossa rota pela sub-região de Rioja – Alavesa.  
A paisagem, entretanto, mudou. O verde ganha outros tons quando o arvoredo da floresta dá lugar a vinhedos a perder de vista. Não é preciso conhecer todas as regiões vinícolas do planeta para percebermos que estamos numa das maiores áreas de vinha do mundo.

Além de Rioja-Alavesa, situada a norte do rio Ebro, na província basca de Alava, a região de Rioja conta ainda com outras duas sub-regiões: Rioja Alta, na parte do vale do Ebro, a Oeste de Logroño, e Rioja Baixa, a sul e a este do rio. Como acontece em outras regiões do mundo, as divisões não se topam à vista. O nosso guia chama-nos à atenção para um pormenor ao entrarmos na localidade de Cenicero: “Vejam, a cor das estradas muda”. No País Basco, são escuras e, aqui, são mais claras e em pior estado. “Estamos em Rioja província”, avisa. Há sobretudo questões administrativas que determinam estas divisões, contudo cada uma das sub-regiões tem as suas particularidades. Na Rioja Baixa, as vinhas estão a uma altitude que ronda os 300 metros, o clima é mais mediterrâneo e as temperaturas mais elevadas (30º a 35º C). Já na parte Rioja Alta e Rioja Alavesa, onde se encontram alguns dos produtores mais afamados e as melhores vinhas, o clima é mais temperado e os solos são argilo-calcários. A diferença manifesta-se principalmente em termos de altitudes. As vinhas de Alavesa situadas no sopé da Serra Cantábria, estão num ponto mais alto, até 800 metros, dando origem a vinhos mais frescos.    
 
Rioja e a imponente adega de Marqués de Riscal


Quando passamos o Ebro, já com uma hora e vinte de caminho, o asfalto escuro anuncia que entramos de novo no País Basco. Passados dois ou três quilómetros chegamos a Elciego e quando o carro dá a curva avista-se uma espécie de disco voador reluzente, entre os vinhedos e edificações do Século XIX. É nada mais, nada menos do que a Cidade do Vinho, o edifício encomendado pela Herederos de Marqués de Riscal ao arquiteto canadiano Frank O. Gehry. O edifício do autor do Guggenheim de Bilbau, que se destaca pelos futurísticos painéis contorcidos em titânio e aço, foi erigido como um ritual de passagem entre o passado e o futuro. Projetado em 2000 e inaugurado em 2006, a Cidade do Vinho integra os edifícios originais, entre eles uma adega equipada com tecnologia avançada, loja e um hotel de cinco estrelas, que abarca, igualmente, um restaurante com uma estrela Michelin (do Chefe Francis Paniego) e um Spa de vinoterapia.

Embora pareça um corpo estranho, o edifício futurístico parece bem integrado e as escolhas de cores e alguns materiais têm um significado. Por exemplo, a parte edificada, construída em pedra do arenito tradicional da região (calcário), fica virada para a vila de Elciego e a restante para as vinhas, sendo que a coloração das placas de aço e titânio representam as cores da marca: o rosa - as uvas e o vinho; o dourado - o arame que envolve as garrafas; e o cinza prata - a cápsula da garrafa.

Após a visita ao “corpo estranho” seguimos para os edifícios da adega original, cuidadosamente recuperada de forma a manter as características iniciais, e onde se destacam o conjunto de cubas de fermentação em carvalho “Allier”.

A adega original foi finalizada em 1868 e foi uma das primeiras a serem construídas em toda a Rioja, por um produtor de referência. Uns anos antes, começara a grande revolução na região com a chegada de comerciantes e técnicos franceses, que vieram em busca de uma nova fonte de fornecimento após a filoxera ter dizimado as vinhas em França, a partir do final da década de 1840. Rioja tinha tradição na produção de vinho, mas estava muito virada para o mercado local e muito menos desenvolvida do que Bordéus, por exemplo. Foi daqui, aliás, que chegou um dos responsáveis por esse impulso, Jean Pineau, especialista em viticultura, vinificação e tonelaria, e que é reconhecido hoje como “o pai dos vinhos riojanos da era moderna”.

Pineau havia sido recrutado, inicialmente, pelo conselho regulador local onde conduziu uma série de experiências que vieram a melhorar a qualidade e a conservação dos vinhos, um dos grandes problemas da altura. Foi com ele que se introduziram algumas castas francesas e as barricas de 225 litros de Bordéus, que ainda hoje vigoram um pouco por todo o lado (ainda que aqui sempre tenham predominado as de carvalho americano). Mudanças políticas levaram a que o técnico gaulês fosse dispensado e quem aproveitou foi o Marqués de Riscal que o contratou e a quem deu carta branca para continuar a desenvolver o trabalho que o trouxe à região.

O boom desta revolução durou cerca de 40 anos e Rioja viria a passar por vários problemas, devido a diversos fatores: a recuperação das vinhas em França e o fecho das fronteiras deste país à importação; a chegada da filoxera a esta parte da Península e, mais tarde, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que levou ao abandono dos campos, bem como a Segunda Guerra Mundial (39-45), que paralisou o mercado europeu. A recuperação dar-se-ia de novo, a partir de 1950, com o impulso do mercado exterior e sobretudo, com a transição para a democracia e, posterior entrada na Comunidade Europeia. De facto, as décadas de 1970 e 1980 trouxeram um crescimento da classe média (que fez aumentar o consumo interno) e a oportunidade para o desenvolvimento e modernização da indústria, que levou a um aumento da quantidade e qualidade dos vinhos e preparou a região para competir com o Novo Mundo.

Nas instalações da Marqués de Riscal, em Rioja-Alavesa, produzem-se 6 milhões de garrafas por ano de tintos e rosados (em Rueda fazem-se mais 4 milhões de brancos e 1.5 milhões de tintos, estes com a designação VT Castilla y León). Porém, na adega antiga recuperada, apenas se vinificam os topos de gama Finca Torrea e Barón de Chirel, além das edições especiais Marqués de Riscal 150 aniversário, e Frank Gehry Selection. São 200 mil garrafas, ou seja, pouco mais de 2% da produção de tintos.

Como acontece em toda a região, a casta Tempranillo é largamente predominante, ainda que as locais Mazuelo e Graciano sejam utilizadas em pequenas percentagens para temperar os lotes de uma boa parte da gama da casa, como é o caso dos clássicos Marqués de Riscal Reserva e Grande Reserva. Fruto do trabalho realizado nos primórdios, com os franceses, foi concedida à empresa uma autorização especial para usar Cabernet Sauvignon em vinhos D.O. Rioja, e ela utiliza uma pequena percentagem, por exemplo,  no lote do topo de gama Barón de Chirel Reserva, um tinto de grande estrutura, moderno e polido lançado pela primeira vez nos anos de 1990 e que rompeu os moldes vigentes em Rioja até então.

Na Adega da Marqués de Riscal existe uma passagem subterrânea para um dos outros edifícios originais. Pelo caminho vamos encontrando corredores com barricas de estágio devidamente ordenadas até chegarmos a uma área com diversas salas repletas de garrafas. São cerca de 130 mil garrafas de todos os anos, desde 1862 até hoje. Não estão à venda, é o espólio da casa que é utilizado em momentos especiais: provas verticais ou leilões, como o que a casa organizou, em 2011, em Pequim, com 100 colheitas diferentes de 1862 a 2005. 
 
De Elciego a Samaniego
 
Saímos de Elciego rumo a La Guardia, uma das povoações medievais mais bonitas de Espanha. Além da grande atração local, o pórtico da Igreja de Santa Maria de los Reyes, La Guardia oferece como atrativo aos entusiastas do mundo dos vinhos, a oportunidade de visitar algumas das caves subterrâneas existentes por toda a vila. Inicialmente os “calados”, assim se chamam, foram construídos nas imediações do castelo para armazenamento de armas, munições e outros fins militares. Porém, mais tarde, uma vez desativada essa função, começaram a ser utilizados para produzir e guardar vinho. Basicamente, quase todas as casas à volta do castelo têm a sua cave, sendo que há várias ligadas por túneis (que já serviram, inclusive, para fugas). Produzia-se (e produz-se), por aqui, vinhos de maceração carbónica. “Atiravam-se as uvas com engaço para tanques de cimento por um buraco e elas começavam a fermentar antes de estouraram”, explica-nos o nosso guia. Este estilo dá origem a vinhos simples, com pouca estrutura, baratos, para serem consumidos jovens e maioritariamente no local. É um “vinho de taberna”, ainda que vários produtores conhecidos o tenham começado a fazer com outros preceitos.

A etapa seguinte leva-nos a Samaniego, às caves da Remírez de Ganuza, um pequeno produtor de prestígio da região, que detém ou controla 77 hectares de vinha de 245 parcelas, onde produz 120 mil a 150 mil garrafas por ano. “Não esperem nada como a Marqués de Riscal. É totalmente diferente”, avisa-nos o guia. Atende-nos Cristina Ganuza, filha do produtor e mulher do enólogo da empresa. O tempo não é muito, mas ainda dá para provar alguns dos vinhos mais representativos da casa e fazer uma volta à adega. Estamos em Rioja onde a velhice (no bom dizer) é um posto e, por isso, “tradição”, “antigo”, “vinhas velhas”, ou “estágios prolongados”, são palavras que se ouvem e sentem com frequência. Por exemplo, nesta casa, que nem é muito antiga (foi criada em 1989), só se fazem “reservas” e “grandes reservas” – mais um tinto de maceração carbónica para ajudar a manter a tradição – e só se engarrafam vinhos de marca própria com cepas com mais de 25 anos. Porém, produtores como este não estão parados no tempo e procuram incorporar técnicas e métodos modernos, inclusive alguns inovadores, para criarem vinhos que fazem a ponte entre a tradição e a modernidade. É o que acontece com o método desenvolvido na casa de prensagem através da introdução na cuba de um enorme saco de PVC enchido de água e oxigénio que permite espremer suavemente as uvas sem esmagar as grainhas. Segundo produtor, este procedimento evita de forma mais eficaz “a oxidação do vinho e o aparecimento de aromas herbáceos e sabores indesejáveis que a prensagem convencional produz”. O mosto resultante da primeira pressão vai para os reservas, enquanto a parte mais concentrada é utilizada para fazer o topo de gama Transnocho.

A Bodega Bai Gorri, o próximo destino, fica a poucos minutos dali. Estamos em plena hora de almoço, o que no país vizinha significa que já são umas 15 horas. Ao chegarmos, deparamo-nos novamente com umas instalações grandiosas, mas ao mesmo tempo relativamente discretas. Pode parecer um paradoxo, mas não é. Adega desenvolve-se do cimo de uma colina e estende-se semienterrada pela encosta abaixo. No topo, onde fica a entrada, encontra-se uma enorme caixa de vidro de 400 m2, que inclui um mirador que permite observar a paisagem de vinhedos espalhada redor de Samaniego. Embora esta parte do edifício dê nas vistas, a monumentalidade do conjunto percebe-se, sobretudo, por dentro, quando começamos a descer os sete níveis que o compõem.   
O projeto do arquiteto Iñaki Aspiazu foi pensado, acima de tudo, para beneficiar o processo de vinificação, dado que a construção em declive permite que o movimento das uvas e do vinho se processe por gravidade sem necessidade recorrer a remontagens através de meios mecânicos. Por outro lado, o facto de parte da adega estar enterrada no subsolo cria, igualmente, melhores condições de estágio dos vinhos em barricas. Porém, há uma outra valência muito importante, a do enoturismo. É que o desenho do edifício permite que toda a atividade da adega possa ser observada sem perturbar os trabalhos. Outra parte importante é o restaurante onde se desenrola uma série de atividade eno-gastronómicas da empresa. Não é à toa, por isso, que a Bai Gorri receba atualmente cerca de 25 mil pessoas por ano e se encontre entre no Top 3 de adegas mais visitadas na região.

Já não há tempo para efetuar uma prova separada, pelo que os vinhos são servidos a acompanhar a comida, ao almoço. Junto com os da casa - de uma produção total de 650 mil garrafas produzidas a partir de uvas de 120 hectares de vinhas próprias e compradas – são apresentados, igualmente, outros vinhos da ARAEX, a associação comercial de produtores independentes, aos quais pertence a Bai Gorri. Este agrupamento sedeado em Rioja tem como função a promoção e comercialização dos vinhos destas empresas no estrangeiro e é responsável pela colocação de 11 milhões de garrafas em 70 países. Pelos exemplos mostrados, deu para perceber que embora cada produtor tenha o seu perfil, existe uma ideia que os une: a de fazer vinhos que se perceba a região de origem, mas com um cunho moderno e de certo modo diferente dos clássicos de outros tempos.
 
As horas passam e é tempo de nos fazermos à estrada e regressar a Bilbau. O cansaço apodera-se do grupo e já ninguém quer saber se as estradas são mais claras ou mais escuras ou porque é que o Tempranillo domina largamente a região. Em Rioja, o céu aberto mantém um ar de sua graça, mas ninguém aposta muito se é para durar. Afinal, dizem que quando ao atravessar o Parque Natural de Gorbeiako tudo muda. A ver vamos.
 
Contactos: 
 
. Marqués de Riscal: C/ Torrea 1, 01340 Elciego (Álava). Tel: (+34) 945 60 60 00
. Bodegas Remírez de Ganuza: Constitución, 1 01307 Samaniego (Álava). Tel: (+34) 945609022
. Bai Gorri: Ctra. Vitoria-Logroño, km 53 / 01307 Samaniego (Álava). Tel (+34) 945 609 420

 
No site da Rota de Vinhos Rioja Alavessa (rutadelvinoriojaalavesa.com) encontrará diversos programas relacionados com os vinhos, produtores e localidades no seu perímetro (o que ver, onde ficar, onde comer, festividades).  

 

TEXTO Miguel Pires