Abegoaria

Granja - Amareleja, Moreto e Vinho de Talha

Fotografia: Fabrice Demoulin
Manuel Moreira

Manuel Moreira

Na Granja-Amareleja, algumas castas brancas como Manteúdo, Trincadeira das Pratas, Roupeiro, Perrum, Rabo de Ovelha e Diagalves (conhecida localmente por Pendura da Amareleja), são a alma dos seus vinhos brancos. Mas é a Moreto que acolhe o destaque pela identidade que confere aos tintos desta sub-região.

 

O desafio era determinado e claro: “Venha descobrir a sub-região do Alentejo mais diferenciadora e menos conhecida, a Granja-Amareleja!”. Por si só, essa descoberta já seria incitante e convidativa. “Aprender os segredos da casta Moreto e das vinhas velhas onde ela conserva a sua identidade” foi o derradeiro apelo, o desafio que tornava o convite definitivamente irresistível. 
A incursão por estas terras do Alentejo interior teve ainda como aliciante o saber e a experiência do mestre José Piteira, que nos orientou pelos segredos da casta Moreto e pelos seus vinhos de talha e, simultaneamente, pôr à prova o Vinho de Talha no que diz respeito ao envelhecimento.


Mesmo os enófilos mais atentos dão-se conta que o Alentejo é muito vasto e diversificado nos seus territórios, mas talvez não se tenham apercebido que, por isso mesmo, é uma das duas regiões vitivinícolas que acolhe maior número de sub-regiões com Denominações de Origem própria em Portugal, sendo a Granja-Amareleja uma das oito DOP do Alentejo. É, talvez, uma das DOP alentejanas menos badaladas, na atualidade. Desde logo, a patente diversidade do território contraria uma certa e injustificada noção de uniformidade dos vinhos alentejanos.


Esta sub-região situa-se na margem esquerda do Guadiana, paredes-meias com a fronteira espanhola. Agrega as freguesias de Amareleja e Póvoa de São Miguel e parte das freguesias de Santo Amador e de São João Baptista, do concelho de Moura, e as freguesias de Granja, Luz e Mourão, do concelho de Mourão. Toda esta área está sujeita a um dos climas mais áridos e inclementes de Portugal. A título de exemplo, a temperatura mais alta de sempre registada em Portugal foi, a 1 de agosto de 2003, de 47,4ºC, justamente na Amareleja.


A inauguração da barragem do Alqueva, em 2002, permitiu a criação do maior reservatório artificial de água da Europa Ocidental, apelidado pela BBC News de o Grande Lago. Construída tendo em vista o regadio para toda a zona do Alentejo e produção de energia elétrica, entre outras atividades, veio a alterar algumas das condições edafoclimáticas e, em especial, atenuar a secura e as elevadas temperaturas que se fazem sentir. Os solos são em geral “paupérrimos, forrados a barro e xisto, oferecendo produções e rendimentos baixíssimos”, segundo informação da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA). Contudo, ao visitar uma das vinhas de Moreto com cerca de 80 anos, pisamos chão com elementos de quartzo, xisto, calhau rolado, de base arenosa e menos argila, sendo realçado por José Piteira que, para a casta Moreto, é importante que o solo não seja muito húmido, pois não conseguiria amadurecer convenientemente. Pelo contrário, revela, é nas areias que está o melhor Moreto, nas vinhas mais antigas, com frequência em pé-franco, sem recurso a porta-enxerto, como vimos numa vinha tradicional na Póvoa de São Miguel, em que coabitam oliveiras e videiras. Ficamos a saber que, até aos anos 90, a variedade representava 80% do total das castas plantadas na Granja-Amareleja. Os melhores locais eram reservados para os cereais, os menos bons para oliveira e vinha.


Por aqui, a viticultura apresenta “fortes contrastes que coexistem de forma equilibrada, com as grandes vinhas modernas, cultivadas segundo as melhores técnicas vitícolas, recorrendo a recursos humanos especializados, e as vinhas arcaicas de sequeiro, típicas do minifúndio regional, cultivadas pelos pequenos vinhateiros segundo técnicas milenares e sem recorrer à enxertia”, dizem-nos. E é isso mesmo que verificamos ao percorrer de carro, não sem uns quantos solavancos pelos caminhos de acesso, algo como um manto de retalhos de terrenos com vinha e oliveiras, uns cuidados, outros em visível descuido ou mesmo abandono. 

Moreto a fundo

Na Granja-Amareleja, algumas castas brancas como o Manteúdo, Trincadeira das Pratas, Roupeiro, Perrum, Rabo de Ovelha e Diagalves (conhecida localmente por Pendura da Amareleja), são a alma dos seus vinhos brancos. Algumas destas são mesmo as prediletas para elaborar vinhos de talha, o que confirmamos na prova de vinhos brancos de talha levada a cabo. Mas é a Moreto que acolhe o destaque pela identidade que confere aos tintos desta sub-região.


Mesmo não sendo fácil explicar porquê, José Piteira, profundo conhecedor da região, avança com a justificação “de que devido à margem esquerda do Guadiana ser a região mais quente do país, a Moreto tem condições para amadurecer melhor”. Outra razão apontada é que os clones da Amareleja “devem ser melhores, pois os cachos são mais pequenos e os bagos mais miúdos”. A pobreza dos terrenos e a sua baixa produção facilita a maturação. Na margem esquerda do Guadiana, as uvas Moreto dos pequenos produtores dão sempre mais grau do que as das vinhas mais novas. “As cepas das vinhas mais velhas são “mansas”!”, afirma.


Isto porque “a enxertia do Moreto, obrigatória na margem direita, induz a expensão vegetativa da casta e dificulta, quase sempre de forma irremediável, a maturação das uvas”. Ao comparar os teores alcoólicos numa e noutra margem, do lado direito “as graduações são da ordem dos 10 a 11 graus de álcool provável mas, na Amareleja, são frequentes graduações entre 13 e 14 graus”. Contrastam também nos índices de cor e aroma, pois na Amareleja “os vinhos são mais ricos em cor e têm um perfil aromático muito exuberante, que torna os vinhos novos muito sedutores”.


Somos informados de que o Moreto tem uma longa história, já citada em textos do séc. XVIII e enraizada na tradição vitícola do Alentejo oriental, segundo a qual “o potencial enológico da casta é superior ao descrito na literatura recente”. Os pequenos agricultores têm sido os baluartes da preservação deste património, mais pela sabedoria popular do que pelo conhecimento técnico. O perigo de extinção ainda é uma realidade pois, segundo os nossos guias, na sub-região, já só persistem 80 hectares, situação que José Piteira e Manuel Bio lutam para contrariar, plantando, em breve, uma vinha de Moreto num terreno junto às instalações da adega da Cooperativa de Granja-Amareleja. 

Renascimento e recuperação

Peça-chave no desenvolvimento económico desta região, no que diz respeito à viticultura, ao vinho e ao negócio do vinho e não só, é Manuel Bio. Nascido nestas terras, empresário, de vida profissional ligada à gestão e direção na vertente comercial e distribuição em empresas de referência, a sua experiência granjeou-lhe aptidão para, numa primeira fase, resgatar da falência a Cooperativa Agrícola da Granja e conferir-lhe novo fôlego e dinamismo, que se entende pela realidade atual.


A Cooperativa Agrícola da Granja começa a entrar em decadência nos anos 1995/96. Em 2002 o colapso é iminente e, como o seu pai era associado da cooperativa, decidiu, “também pelo meu pai, ir a uma assembleia geral da Adega, para ver o que se passava”. Toma conhecimento dos vários problemas, entre os quais o alarmante atraso do pagamento das uvas aos associados e, “um pouco por acaso”, os destinos da entidade não se fazem sem Manuel Bio, que propõe uma solução com o apoio da banca e, entre 2002 e 2006, esses problemas vão sendo solucionados. No ano de 2007 decide assumir a presidência e em 2013 as contas atingem o ponto de equilíbrio, simultaneamente com a devolução da dívida em bom ritmo, saldada no ano de 2019. Com serenidade, não sem ponta de orgulho, sublinha que “hoje não devemos nada a ninguém!”. Pelo caminho, desde 2008 investiram cerca de dois milhões de euros. “Tem sido sempre a crescer!”, conta Manuel Bio. Hoje pagam tudo com o que vendem, as vendas estão a subir, as instalações da Cooperativa da Granja foram melhoradas, reorganizadas e modernizadas, o relacionamento com os associados é mais qualitativo, pois “nenhum sócio faz entrega de uvas sem aprovação do laboratório e da enologia” e até mesmo o enólogo José Piteira terá uma miniadega para experiências - para “fazer alquimia”, como afirma. A Cooperativa Agrícola da Granja é responsável por 95% da produção de vinho da sub-região, com seis milhões de garrafas produzidas por ano e cem viticultores associados.


Visitamos a nova Aldeia da Luz e a vinha comunitária da aldeia, plantada aquando da construção da nova aldeia, em 2002, quando foi atribuído um hectare dessa nova vinha a cada família realojada. Reúne 87 hectares e é uma das vinhas mais importantes para a Cooperativa da Granja e, por enquanto, a maior da sub-região, gerida pela associação de agricultores da Aldeia da Luz. A totalidade da uva desta vinha é, por regulamento, vendida à Cooperativa. As castas plantadas foram definidas pela Direção Geral de Agricultura e são preenchidas totalmente por variedades tintas.


Com Manuel Bio, em sociedade com José Piteira e Filipe Lourenço, nasce o projeto Abegoaria, que se afirma como crucial na preservação do melhor da região, no fomento da economia local e valorização das suas gentes. Transpõe para uma realidade prática a sua própria definição, ou seja, local para preservar ou resguardar o gado ou os utensílios agrícolas. Sob a forma de grupo vitivinícola, com vinhos e propriedades em várias regiões, o Alentejo é o seu berço e onde tem maior variedade de projetos.


Mas não só de vinhos se constrói o projeto Abegoaria. A aposta nos azeites, nos queijos, nos enchidos e no presunto de Barrancos marca uma nova etapa na diversificação para outros produtos gourmet. Na sub-região, compreende os projetos Amareleza Vinhos (marcas Piteira e José Piteira – vinhos de talha) e os vinhos da Cooperativa Agrícola da Granja, sendo as marcas GA e Granja-Amareleja as mais reconhecíveis.


Visitamos a Herdade Abegoaria dos Frades, adquirida em 2015, em pleno Alqueva, composta por 500 hectares. No topo de uma pequena encosta, está uma estrutura em recuperação em que, do topo das suas duas torres circulares, podemos contemplar o desafogado cenário circundante e mesmo mirar Espanha ali ao lado. “Nascerá aqui brevemente um dos melhores projetos enoturísticos do país, composto por um hotel de charme”. Possui de momento 55 hectares de vinha, estando projetado ascender a 95 hectares em 2022. Esta estrutura trará assim a vertente do enoturismo ao projeto Abegoaria que, entre outras atividades para os hóspedes, permitirá que estes elaborem o próprio vinho. Junto a um enorme canil, que testemunha ser a caça atividade bem aculturada na zona, admiramos num armazém adjacente uma impressionante coleção de três dezenas de talhas em fase de recuperação e restauro, vindas de várias adegas familiares. Também no âmbito do enoturismo, inserido na Abegoria, está a adega das Talhas e restaurante Piteira, uma visita incontornável na pequena vila da Amareleja. Aqui encontra-se uma coleção de talhas centenárias numa adega em plena operação, a par de saborosos e autênticos pratos alentejanos. Alberga ainda o Clube Galega, o centro interpretativo da azeitona e do azeite e um tributo à azeitona Galega, única no mundo, também conhecida por “azeitona portuguesa”. 

A magia da talha

É precisamente na Amareleja que visitamos a adega Piteira, adega das talhas onde José Piteira oficia a sua mestria na elaboração do vinho em talhas centenárias, no qual a Moreto é uma das estrelas. Dizem-nos que por aqui a casta porta-se melhor no carvalho francês do que no americano, “mas o que entusiasma é a vinificação em talhas de barro, à maneira tradicional da Amareleja”. José Piteira, enólogo autodidata, aprendeu vendo fazer e desenvolveu a sua arte com uma personalidade e cunho muito próprio, à qual se dedicou exclusivamente até 1999. Começou a fazer vinhos de talha desde miúdo, aos 12 anos, acompanhado do seu avô e ajudando o seu padrinho, José Amante Baleiro, na atual adega. Aprimorou a técnica, estudou e foi aprendendo pela experiência, o que o leva a partilhar detalhes tão precisos e preciosos. Exemplifica junto a uma talha levantando o braço para “medir” até que altura devem estar as massas, pois vê muitas talhas demasiado cheias, elevando o risco de estas se partirem. Para além disso mantém o ripanço, não corrige nem faz adição de leveduras, as operações mecânicas, tais como mergulhar a manta com um pé-de-galo, diariamente, de manhã e ao fim da tarde, e o uso de azeite para proteger o vinho de oxidações, são feitas sempre de forma tradicional. Os seus vinhos de talha têm sido certificados todos os anos desde 2010, o primeiro ano da certificação Vinho de Talha. Também à maneira tradicional bebemos vinho da talha acabadinha de abrir em que foi usada uma cana de caules de junça (planta) seca a servir de filtro ao vinho que escorria para um alguidar de barro.


Os vinhos de talha envelhecem bem. Essa é a convicção de José Piteira ao referir que “sempre se achou os vinhos de talha são vinhos para consumir rapidamente, o que é um mito, porque os vinhos de talha, quer sejam brancos ou tintos, fazem quatro meses de maceração, quer dizer, estão por quatro meses em contacto com as películas”. Essa “extração, inclusive de taninos, gera vinhos que ficam com uma estrutura muito forte”. A magia da talha a funcionar. E para o demonstrar preparou uma prova vertical de vinhos de talha (branco e tinto) e Moreto “não-talha”, imersos pela atmosfera tradicional, rodeados das centenárias talhas.


Começamos por provar alguns vinhos “fresquinhos” do ano retirados das várias talhas. Os brancos de talha são feitos a partir de Diagalves, Roupeiro, Arinto e Fernão Pires e nos tintos de talha a Moreto é soberana. Os vinhos de talha José Piteira permanecem sempre dois anos em garrafa antes de serem lançados para o mercado.


Na globalidade, os vinhos provados confirmam a anunciada capacidade de envelhecimento, apresentam estrutura muito afirmativa e, apesar da média/baixa acidez analítica, os vinhos ostentam uma frescura irrepreensível. A magia da talha a funcionar! O Moreto passeou a sua personalidade, com nariz muito distinto, alguma rusticidade, mais terroso nos vinhos de talha, mais elegante nos “não-talha”, mas sempre com nervo, taninos por vezes vigorosos e assinalável persistência. 

 

 

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