Caves S. João

Um amor de perdição que celebra 100 anos

Fotografia: Ricardo Garrido
José João Santos

José João Santos

É provável que a notável capacidade de evolução que possuem seja a maior beleza dos vinhos portugueses. Por isso, ficamos embevecidos quando percorremos corredores e corredores de vinhos antigos, quando comprovamos que estão respeitosamente acondicionados e incrivelmente vivos.
As agora centenárias Caves São João são um amor de perdição para os amantes de vinho e não há romance nem novela de Camilo que possa traduzir o que sentimos quando um branco de 1966 nos eleva a alma para uma espécie de éden dos vinhos velhos…



As Caves São João estarão para os devotos do vinho um pouco como a Académica ou o Belenenses para os loucos por futebol – sem conseguirmos muito bem explicar nem como nem porquê, há respeito pelo passado, carinho pelo património e um fervilhar de sugestões e de ideias quanto aos caminhos a seguir. Tal como no futebol, as caves suscitam debates apaixonados, que se intensificam episodicamente ao ritmo de um boato ou mesmo de uma notícia que parecia pronta a sair sobre uma possível aquisição ou transferência, tal e qual um defeso futebolístico.


Fundadas em 1920 por três irmãos – José, Manuel e Albano Costa –, as caves começaram por se dedicar ao comércio de vinhos finos do Douro e licores. Chegados aos anos 30, a filosofia teve que se alterar, uma vez que deixou de ser possível a elaboração de Vinhos do Porto fora dos armazéns de Vila Nova de Gaia. É aí que a empresa decide voltar-se para os vinhos da Bairrada, iniciando igualmente a produção de espumantes pelo método champanhês (segunda fermentação em garrafa), metodologia para a qual muito contribuiu o enólogo francês Gaston Mennesson.


A Bairrada dessa época era igualmente fervilhante. As termas da Curia, o Luso e o Bussaco (sim, à época com dois “s”) figuravam por entre os locais de eleição do país, convencendo muito em particular as elites políticas, sociais e culturais.
A partir de São João da Azenha, aquela que é a empresa familiar mais antiga ainda em atividade do concelho da Anadia iniciava a exportação para as colónias portuguesas em África e para o Brasil. No pós II Guerra Mundial, nos anos 50, surgiu o emblemático Frei João e no vizinho Dão, anos volvidos, o incontornável Porta dos Cavaleiros. Os Reserva aportaram uma inovação, o uso de rótulos de papel revestidos a cortiça natural.


Na linha temporal seguiu-se a aquisição da Quinta do Poço do Lobo, na freguesia da Pocariça, Cantanhede, onde pela primeira vez na região foi experimentada a calda bordalesa (preparado para combater os fungos na vinha). A propriedade, que entretanto se afirmou como um dos esteios da Bairrada, espraia-se por 37 hectares, 29 dos quais são vinhas. É o brinco da viticultura das caves, que ali decidiram plantar, segmentadas em parcelas, castas brancas como Arinto, Cerceal, Chardonnay ou Sémmilon e tintas como a Baga, Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon, Merlot, Petit Verdot, Pinot Noir, Sousão, Syrah ou Touriga Nacional.


Hoje, as agora centenárias Caves São João estão a produzir uma média de 400.000 garrafas anuais, 40% espumantes. Além da Quinta do Poço do Lobo operam com uma dúzia de viticultores e exportam 30% da produção para mercados como os EUA, Brasil, Macau, Alemanha, Reino Unido, Canadá, Bélgica, entre outros.

O coração e a razão 

Neste regresso marcamos encontro precisamente na Quinta do Poço do Lobo. Era dia de vindima, os cachos de Merlot apresentavam-se viçosos, prontos a integrar o Lote do São João espumante rosé.


Célia Alves acompanha-nos. Natural de Arouca, formada em Engenharia Alimentar, está nas Caves São João desde 2004, sendo a atual gerente. O trabalho que tem desenvolvido ao longo destes anos afirmou-a como dos rostos da região, a ponto de presidir à Confraria dos Enófilos da Bairrada. De sorriso tímido mas sincero, sempre disponível a esclarecer um detalhe que nos possa escapar, é de alguma forma a razão das caves.


Manuel José Costa, o sócio-gerente de uma empresa com 16 sócios, todos familiares, será o coração das caves. Também na Quinta do Poço do Lobo surpreende-nos num clássico Citroën 2 Cavalos, de 1990, imaculado. Foi o primeiro carro que adquiriu, nele deslocou-se até ao Entroncamento para casar. Vive com intensidade o dia a dia da empresa familiar, acompanha de perto a vindima, conhece os talhões da quinta como as palmas das mãos.


Por vezes desconcertante, Manel Zé é um bairradino apaixonado mas também crítico (não são todos?). Acredita que a região reúne as condições para ir mais além e observa que na década de surgimento das caves a Bairrada “era mais cosmopolita e muito avançada” .

 

Uma biblioteca de sonho

Enchemos a alma em São João da Azenha. Entrar nas caves é como colocar um devorador de livros numa biblioteca de sonho. São corredores repletos de garrafas em sono profundo, que vão sendo rotuladas ao ritmo dos pedidos, apenas com indicação do ano de colheita escrita a giz, em singelas ardósias. O património de vinhos antigos, preservados em condições de exceção, será porventura a mais óbvia das razões pelas quais as Caves São João são a nossa Académica ou o nosso Belenenses. Aguardentes, espumantes, vinhos brancos e tintos, o mais antigo em comercialização data de 1959.


“As colheitas antigas estão a cumprir o seu papel, a dar credibilidade ao que fizemos e ao que fazemos. Hoje, neste mundo moderno, as colheitas antigas fazem toda a diferença”, enfatiza Manuel José Costa, como num reencontro do coração com a razão. 

“Não há baliza racional para as belas, nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa”, in “Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

 

Caves S. João
Estrada Real, 3780-140 Sangalhos
T. 234 743 118
E. geral@cavessaojoao.com