Entrevista com António Magalhães

“Em momento algum senti que houvesse capacidade de reconhecer o verdadeiro custo de produção da uva”

Fotografia: Fotos D.R.
Luís Alves

Luís Alves

António Magalhães e viticultura no Douro são realidades inseparáveis, pelo menos nas últimas quatro décadas. A poucos meses de iniciar a sua reforma, a referência de viticultura da Fladgate Partnership dá uma grande entrevista à Revista de Vinhos. Alterações climáticas, avanços tecnológicos, conquistas, futuro do Douro e muitos outros temas foram motivo de conversa em jeito de retrospetiva, no habitual registo ponderado, culto e otimista que se lhe conhecem. 

 

Como é que vê os impactos na viticultura produzidos pelas alterações climáticas?
As alterações climáticas estão aí. Eventualmente poderemos também estar a viver a sobreposição de um ciclo climático com as tão faladas alterações. Vivemos um desses ciclos na década de 40 do século passado, por exemplo. Mas há uma nova realidade que as alterações climáticas trazem que é a da imprevisibilidade. No entanto, creio que há um dado reconfortante que é a quantidade de precipitação. Tem-se mantido inalterada.

Mas é irregular.
É uma condição de todo o clima mediterrânico. Irregular mas consistente quando analisada numa série de anos. A grande mudança das alterações climáticas é a temperatura que tem aumentado inegavelmente. E isso sente-se sobretudo no inverno e tem trazido uma desregulação dos ciclos da planta. Tornam-se mais longos, com antecipação da época de abrolhamento.

Por falar em abrolhamento, como está este ano?
Em princípio a data de abrolhamento será na próxima semana [semana que começou a 3 de março]. Vai estar em linha com 2016, que aconteceu cedo, e 2020 e 2021 que aconteceram muito cedo. A data média de abrolhamento no Pinhão, na Quinta da Roêda, por exemplo, é 15 de março. Vamos ter um abrolhamento a acontecer mais cedo em pelo menos uma semana.

Regressemos ao clima. Os fenómenos extremos, de granizo forte ou de uma chuva diluvial, têm acontecido com mais frequência?
O mais evidente - diria eu - é o aumento da frequência da queda de granizo. De 2017 para cá, estes fenómenos têm sido mais frequentes e mais severos. Sem sombra de dúvidas. Os anos de 2018 e 2023 foram exemplos disso.

Que zonas na região do Douro acha que viverão melhor com estas alterações?
Eu sinto que o Douro está preparado para as alterações climáticas. É um caso especial no mundo. Poucas regiões estarão naturalmente tão bem preparadas para as mudanças que estão a acontecer como o Douro. Convém lembrar que a região nasce no século XVIII, ao ser demarcada, numa resposta política ao Tratado de Methuen. Foi preciso fazer um ordenamento do território rural e produtivo. E nesse ordenamento, o Douro foi demarcado como região produtora de vinho e o resto do país dedicado a outras culturas, como os cereais.
 
Mas porque é que diz que o Douro está naturalmente preparado para as alterações climáticas?
Porque o Douro tem de ser visto como uma concha vinhateira que guarda alguns segredos, dividida em três grandes sub-regiões que são os dois meridianos pluviométricos. É a precipitação que divide o Douro em três sub-regiões: Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior. O Douro nasce no Baixo Corgo. E segue uma linha de expansão para o Cima Corgo porque vai buscar um índice de aridez mais elevado que lhe permite fazer vinhos mais alcoólicos e retintos. No entanto, nessa progressão, enfrentou um obstáculo: o cachão da Valeira que é destruído em 1780. Daí progride para o Douro Superior mantendo sempre um segredo. À medida que o Índice de Aridez aumenta, para montante do rio Douro, a descontinuidade da vinha também aumenta.
A tudo isto junta-se a altitude da vinha. O Douro tem a capacidade de plantar videiras desde os 80 metros até aos 600. E por cada 100 metros que sobe, a temperatura desce 0,65ºC. E, por fim, três fatores-chave: a exposição solar, a casta e a lotação dos vinhos. O Douro planta vinhas em todos os quadrantes: norte, sul, este e oeste. E para a mesma hora, a temperatura varia cerca de 2ºC entre o norte e o sul. Para terminar, a escolha da casta que é também essencial e a arte do “blend”, em que se misturam diferentes lotes para conseguir os vinhos desejados.

Uma visão muito otimista para o futuro.
No pior dos cenários, eu diria que o Douro terá de se reorganizar internamente mas nunca de sair da sua “concha vinhateira”. Eventualmente terá de ‘regressar’ ao Baixo Corgo, tido muitas vezes como o patinho feio. Estou muito tranquilo em relação ao Douro e ao desafio das alterações climáticas.

E sobre o resto do país? Mantém o mesmo otimismo? Em relação, por exemplo, ao Alentejo e ao Algarve?
Naturalmente, o Alentejo também se irá reorganizar e voltar às origens. Se eu fosse um viticultor no Alentejo, uma das minhas apostas principais seria tirar os arames à vinha e regressar à condução tradicional, em vaso. O Alentejo artificial, como o Douro artificial, ou seja, as regiões que regam a vinha, são viticulturas não naturais. E são essas que estão mais em causa no futuro.

E quanto ao Algarve?
Sinceramente, eu pagava para não ser viticultor no Algarve. O Algarve moderno de vinha assusta-me. O controlo do oídio naquela região assusta-me. Como me assusta a violência da Cigarrinha Verde, por exemplo. As mudanças climáticas vão remeter a vinha às suas origens e a viticultura artificial não vai vingar. E o valor da casta vai voltar à sua origem. A primazia que hoje se dá, ao escolher a casta e só depois o território e o clima, vai recuar.

Como vê o momento atual da viticultura?
Divida a resposta em dois pontos. Há uma questão que me preocupa que é a incapacidade de valorizar a uva. Nunca, em momento algum, senti que houvesse capacidade de reconhecer o verdadeiro custo de produção da uva. Sempre se reconheceu o custo da vinificação, sempre se aceitou o custo dos materiais de engarrafamento. Mas nunca vi aceitar os custos de produção da uva. O outro ponto, sobre a viticultura, sobre o estado da arte, é animador. A viticultura e a tecnologia e conhecimento associados evoluíram muito.

Se tivesse que eleger duas ou três técnicas que vieram ajudar o viticultor, quais é que elegeria?
Sem sombra de dúvidas, o avanço da meteorologia agrícola. Foi tremendo e é muito útil no aspeto da previsão mas também para registo de dados. Por outro lado, a inovação na mecanização que não tem apenas a ver com a libertação de pessoas do trabalho mas sobretudo com a possibilidade de aliviar a penosidade de alguns desses trabalhos. O terraceamento das encostas conduzido por laser é outro dos grandes avanços, em que a equipa da Fladgate Partnership apostou bastante para controlo da erosão do solo.

A viticultura é hoje ofuscada pela enologia?
Não sinto muito isso. São protagonismos diferentes. De um ponto vista de um jornalista, por exemplo, eu diria que a viticultura cabe sobretudo numa revista de especialidade e a enologia cabe numa revista de especialidade mas também numa revista mundana. Necessariamente, vai ter mais protagonismo e visibilidade. É assim. É um facto. Não há ninguém a ofuscar. O enólogo tem um lugar na montra e o viticultor tem um lugar atrás do balcão.

Mas não considera que uma maior perceção e conhecimento do trabalho de um viticultor trariam uma maior valorização do produto?
Teoricamente, sim. Mas o consumidor procura sobretudo o fator preço. É o grande foco. Por isso, eu acredito que o consumidor reconhece o esforço mas não está disposto a pagá-lo. E isso é um problema.

Hoje em dia existem alguns projetos que tentam colocar determinados vinhos num patamar de preço diferente. Quando vê uma garrafa custar 600, 800 ou mil euros, percebe esse segmento ou faz-lhe alguma confusão?
Compreendo em absoluto apesar de não ser comprador. Não estou com isso a dizer que não me incomode, por vezes, ver preços disparatados. Mas fico curioso. Porque é que isso vinho tem esse preço? Na verdade, incomoda-me mais quando vejo determinados vinhos que exigiram tanto esforço na produção e envelhecimento e depois são colocados à venda por um preço irrisório.

 

Carreira de várias décadas

 

Em agosto próximo estará a iniciar a sua reforma. Gostava que nos fizesse um breve resumo da sua carreira.
São quatro décadas dedicadas à viticultura de um ponto de vista profissional e mais ainda no contexto de viticultura do Douro. E, de facto, foram quatro décadas gratificantes. E o que tornou gratificante foi, sobretudo, a consciência daquilo que estava por fazer ter sido cumprido. O Douro e o Vinho do Porto são a minha paixão e senti que tinha uma missão a cumprir.

O que destaca de metas alcançadas?
A arquitetura do terreno. Sinto ter contribuído para modelos de vinha capazes de assegurar ao mesmo tempo várias condições: a beleza da paisagem, o aproveitamento do terreno, com patamares estreitos com 1,5m de largura, o controlo da erosão provocado pelas chuvas. E devo também destacar o facto de me ter mantido firme no modelo de granjeio clássico. E quando digo clássico refiro-me à contratação dos assalariados rurais, de forma direta, sem contratações externas, em que as responsabilidades foram de alguma forma transferidas para outros.
Depois, devo dizer que respeitei sempre o património genético das videiras do Douro. Hoje, e desde 2007 com a mudança de nome das castas, o património genético das castas do Douro tem sido adulterado. O caso mais flagrante dessa adulteração é da Tinta Roriz. Uma casta tradicional do Douro que desde o dia em que foi considerada como sinónimo de Aragonês e de Tempranillo, está adulterada e ameaçada. Têm entrado descaradamente videiras de Tempranillo quando deveríamos ter mantido a Tinta Roriz tradicional. Isso é preocupante para mim.

Imagino que quando iniciar a sua reforma, não vai resistir a acompanhar de perto a viticultura do Douro.
Há uma coisa que não perderei: a ligação afetiva à Fladgate Partnership. Devo aquilo que sou a mim mas também à sorte que tive em ter trabalhado nesta empresa. Li recentemente um livro cujo título me tem desembaraçado destas perguntas nesta fase da minha vida. É de um escritor grego, naturalizado sueco, Theodor Kallifatides, que se chama “Outra vida para viver”. É o que eu sinto neste momento.