Júlio Bastos: o fidalgo no château de mármore

Fotografia: Fabrice Demoulin

Júlio Bastos é um dos maiores nomes do vinho português. É daqueles craques de quem muito vai se falar mesmo depois que ter passado para outro plano. É uma mistura de tudo. O homem, o personagem, o produtor, o vinho, tudo se confunde e se completa. Traz no bojo uma história cheia de mundo, reviravoltas, dramas, superação, glória. Fosse um filme de Hollywood, o guião da vida de Júlio Bastos poderia ter sido escrito por Arthur Miller e Dalton Trumbo e dirigido por Louis Malle. Com banda sonora de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

 

 

Alguns dos bons anos de Júlio Bastos foram vividos em Espanha. Mas a terra chama sempre pelos seus e Júlio atendeu à convocação. Mesmo com pouca noção do que deveria fazer, guiado um pouco pelo instinto, muito por vocação, regressava a Estremoz para as vindimas. Aprendia um pouco aqui, outro tanto ali. A doença do pai precipitou a decisão. E eis que, em 1986, Júlio Bastos viu-se na Quinta do Carmo, no meio de vinhas, lagares, barricas e vinhos, sem diploma nem de agronomia nem de enologia, mas já com uma boa dose de mundo nas costas e uma boa noção do caminho a tomar.


“Quando eu comecei com os vinhos, simplesmente não sabia nada. Repetia o que meu pai me dizia. Vinha às vindimas, mas depois, infelizmente, o meu pai ficou doente e em 1986 assumi tudo”, conta Júlio. Não foi um período fácil. A vida pós-25 de abril trazia desafios. A propriedade tinha sido confiscada, boa parte do que havia, vendido. O Alentejo ainda tateava em busca de um recomeço. E lá estava Júlio, no meio de uma propriedade histórica, com vinhas pré-filoxéricas, em busca simplesmente do melhor. Até que chegaram os franceses. Donos de um poderoso e renomado château bordalês (Lafite-Rothschild), com capital, promessas e a certeza de um horizonte menos nebuloso. O então jovem Júlio deixou-se levar pela sedução com sotaque e vendeu metade da Quinta do Carmo. 


“Não sei se fiz bem ou mal, mas no pós-25 de abril as coisas não foram fáceis. Tinha problemas de fluxo de caixa. Na minha primeira vindima, em 1986, fiz apenas 50% da produção, porque não tinha condições de fazer mais do que isso. Quando fiz a parceria com os franceses, precisava justamente desse cash flow”, explica Júlio. “Quem me apresentou os franceses foi o João Portugal Ramos. Conversamos, fizemos muitas provas até estabelecermos a tal parceria. Uma destas provas foi cega, em 1992. Eles provaram o Quinta do Carmo Garrafeira 1986 ao lado do Mouton Rothschild da mesma colheita. E o resultado foi unânime. Todos preferiram o Quinta do Carmo”, lembra.

Tudo parecia, no mínimo, promissor. Mas as desavenças não demoraram a aparecer. No centro da confusão: vinhas velhas, cheias de história e potencial. “Sabia que tinha umas vinhas que imbatíveis. Eram algumas das primeiras vinhas de Alicante Bouschet plantadas no Alentejo, pré-filoxéricas, de muito pouca produção, que davam apenas dois mil quilos por hectare. Mas com uma qualidade absurda. Esta vinha era um field blend, que tinha, além da Alicante, que era maioritária, Trincadeira, Castelão e Moreto”. Júlio opôs-se ao arranque. Mais ainda pelo facto de que os franceses queriam ali plantar Cabernet Sauvignon. Pareciam querer fazer vinhos franceses no Alentejo. Não apenas na vinificação, mas também nas castas que queriam plantar”, lembra. 
Não havia como continuar. As desavenças chegaram a tal ponto que Júlio vendeu a metade que tinha na sociedade. Com o dinheiro conseguido na venda, Júlio poderia ter voltado para Espanha. Poderia ter rodado mundo, feito o que bem entendesse. Mas não. A terra já tinha conquistado o coração de produtor. 

Um novo Alentejo

Guiado pela obstinação de um jovem que tinha a certeza de que estava certo, embora todas as evidências apontassem para o inverso, Júlio Bastos investiu o que ganhou, comprou uma vinha vizinha à arrancada pelos franceses e fundou a Dona Maria Vinhos. Ou seja: depois de abdicar de uma das mais prestigiadas marcas de vinhos de um renascido Alentejo, Júlio encarou o desafio de construir, do zero, uma nova marca. Fácil não foi. Mas basta ver onde está a marca Dona Maria no espetro do vinho português hoje em dia para ver quão bem sucedida foi a empreitada de Júlio Bastos. 

“O que me motivou foi o orgulho de fazer o melhor possível. Eu queria provar a mim mesmo que estava certo e os franceses errados. E, tendo esta quinta, não tinha o direito de deixar de produzir vinhos. Não de grande produção, mas de muita qualidade. Não foi simples, nem poderia ser. Mas se temos convicção, capacidade e vontade de fazer bem feito, todos os desafios podem ser ultrapassados. Investi tudo o que recebi. Hoje, olhando para trás, espero apenas que os que gostam dos vinhos Dona Maria reconheçam o meu esforço em fazer o melhor”, explica Júlio. 

E fazer bem feito é quase um mantra para o produtor. Júlio tem uma direção precisa sobre onde quer chegar e que vinhos gosta de fazer. Vinhos que tenham personalidade. Que se imponham. Que sejam reconhecidos em provas cegas. Que tragam não apenas o lugar no bojo, mas as convicções dele próprio. Enólogos de grande nome como João Portugal Ramos e Luís Duarte já passaram pela Dona Maria. Mas a simbiose que existe entre Júlio e a atual enóloga, Sandra Gonçalves, é magnética, quase inexplicável. Ela sabe exatamente traduzir as expetativas de Júlio. Não é apenas uma enóloga que faz as vontades do chefe. Sandra faz de vinhos as ideias de Júlio Bastos. “Ela sabe como ninguém interpretar o que eu penso. E, mais ainda, desafia-me na mesma medida em que eu a desafio. É uma relação de eterna construção”, define Júlio.

Sigam as próprias ideias

Em relação a Portugal e ao Alentejo, Júlio é crítico, mas otimista. Reconhece a qualidade dos vinhos feitos na região e no país, mas acredita que o reconhecimento é insuficiente. E aponta caminhos. “Os vinhos do Alentejo estão cada vez melhores. Não concordo em nada com a afirmação de que os alentejanos são vinhos fáceis e redondos, com fruta em compota e sem acidez. Pelo contrário. Acho que são o oposto disso. Talvez num ou outro lugar se possa até fazer um vinho assim. Mas aqui, no norte do Alentejo, passa-se justamente o contrário. Muitas vezes temos mesmo que esperar até que os vinhos estejam prontos para ir ao mercado”, acredita. “O problema de Portugal não é a qualidade dos vinhos. O que precisamos é conseguir mostrar ao mundo a qualidade do que se pode produzir aqui. Tanto nos brancos quanto nos tintos, que são vinhos de caráter e com capacidade para envelhecer 30, 40 ou mais anos”, acrescenta. “Produzir por produzir e vender vinhos a euro e meio não vai trazer nada a Portugal. E acho que apenas a qualidade vai trazer reconhecimento ao país. E são estes os vinhos que procuro fazer”, completa o produtor.
Sobre os vinhos que faz, Júlio tem uma ideia bem definida. “Quero ganhar dinheiro quando faço vinhos. Mas quero fazer vinhos que eu beba, que envelheçam bem e de que me orgulhe. Não quero fazer vinhos fáceis, mas o melhor que se possa fazer aqui. Mas não tenho nenhuma dúvida de que meus topos de gama conseguem viver em grande forma no mínimo 30 anos. E é isso que eu gostaria: que os meus vinhos perdurassem tanto quanto os melhores que já bebi”.
E quando desafiado a responder o que o Júlio Bastos que construiu do nada e em pouco tempo uma das mais importantes marcas de vinho em Portugal, baseada especialmente na qualidade, diria ao jovem Júlio encantado e seduzido pelo glamour francês, o produtor não perde o chão e, como de costume, é direto e reto, sincero e franco: Aos mais novos, diria: não façam o que eu fiz na altura. Sigam as próprias ideias. E não deixem o dinheiro ou o encantamento de belas palavras ditar o rumo que se deve seguir”.  É assim Júlio Bastos: sincero, generoso, carismático. E cujo roteiro de vida ainda tem muitos e ricos capítulos a serem acrescentados. Ainda bem. 


TEXTO E NOTAS DE PROVA Alexandre Lalas e Nuno Guedes Vaz Pires

 

Quinta do Carmo
7100-000 Estremoz
T. 268 339 150
E. donamaria@donamaria.pt