Quinta dos Carvalhais: Puro Dão

 
Marc Barros

Marc Barros

A presença da Sogrape no Dão conta mais de meio século, tendo entrado na região em 1957 através da aquisição do capital da sociedade Vinícola do Super Dão, mais tarde apenas do Dão. É dessa data que surgem marcas tão icónicas para os vinhos portugueses como Sogrape Reserva Dão, Dão Pipas ou o incontornável Grão Vasco, caso raro de longevidade de uma marca de vinhos em Portugal. Os vinhos eram então feitos na Adega Cooperativa de Vila Nova de Tazem, pois a empresa não possuía adega própria. Aquando do aproximar do final do contrato entre as duas entidades, a Sogrape ficou numa encruzilhada: renovar o contrato ou avançar para a aquisição de uma propriedade na região? Com mais de três décadas de saber fazer no Dão, afigurou-se natural à empresa adquirir uma quinta e desenvolver o seu próprio projeto vitivinícola. Essa compra acontece em 1988, quando a família Figueiredo, proprietária da Quinta da Falorca, vende os 100 hectares da Quinta dos Carvalhais, em Mangualde, à Sogrape que, de imediato, decide avançar para a construção da adega, concluída em 1990, ano em que saem os primeiros vinhos com o selo Carvalhais. E assim começa a nossa história.

Os cerca de 50 hectares de vinha da Quinta dos Carvalhais formam um conjunto típico do Dão: altitude média de 500 metros numa zona de planalto, sem grandes declives, mas com uma grande diversidade de micro-terroirs. A vasta área florestal, que ocupa praticamente os restantes 50 hectares da quinta, confere grandes manchas de ensombramento que, complementadas com um grande espelho de água, albergam parcelas de vinha que oferecem maior frescura às suas uvas. Estas conjugam-se com outras parcelas que fornecem uvas com maior maturação e concentração. É a própria enóloga Beatriz Cabral de Almeida quem nos explica: “Tudo isso faz com que tenhamos diferentes comportamentos da mesma casta consoante a sua implantação”. Dá como exemplo a Touriga Nacional do lago, colhida sempre mais tarde, bem como o Alfrocheiro; “podemos retirar daqui um Encruzado com mais frescura que pode contrabalançar um Encruzado mais maduro de outras parcelas”, assinala. É daqui que também saem as uvas da casta Semillon que, em anos de podridão, originam o Colheita Tardia. “Esta quinta foi pioneira na região, desde logo na viticultura, pois os clones das castas autóctones utilizados privilegiavam mais a qualidade que a quantidade”, recorda Beatriz. 

Em paralelo, a diversidade de solos acrescenta mais algumas peças a um puzzle já de si complexo. “Estamos rodeados pelas Serras do Luso, Caramulo e Estrela, gerando um clima específico, muito frio e chuvoso no inverno e quente e seco no verão”. Como na esmagadora maioria da região, os solos de Carvalhais são graníticos, mas com parcelas de solos granítico-arenosos e granítico-argilosos.

“A chuva que cai no inverno está armazenada no solo e disponível para as plantas no verão”, prossegue. “Num mesmo dia em que chegamos aos 35ºC durante o dia, descemos aos 15ºC durante a noite. Esta amplitude térmica faz com que as uvas arrefeçam e não queimem os seus ácidos naturais, mantendo a frescura e acidez, que é uma grandes características do Dão, e promove a longevidade dos vinhos”. A componente florestal, formada por pinheiros, carvalhos ou cedros, “que são a paisagem típica de Carvalhais”, transmite-se igualmente aos vinhos. “Por vezes passeio pela vinha e consigo identificar todos esses aromas de bosque, ‘subois’, cogumelos, alguma hortelã que cresce no solo, no vinho. Quando isso acontece, sei que este é um vinho puro Dão. Vinhos muito elegantes e delicados, essa é a especificidade de Carvalhais”, refere Beatriz.

Tudo nasce na vinha

Os encepamentos em Carvalhais são dominados pela Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro e Jaen, nos tintos. Dos mais de 220 lavradores que entregam uvas na adega chegam variedades como Rufete ou Tinto Cão e até, em grande medida, “mistura de castas”. Nos brancos, que representam cerca de 10 hectares do encepamento da quinta, predominam o Encruzado, Gouveio e Semillon, sendo que castas como Malvasia Fina ou Bical são também oriundas dos viticultores com os quais a Sogrape tem parcerias desde há décadas.

A área de brancos deverá ser aumentada, como parte da recuperação de 8 hectares que foram afetados pelos incêndios de 15 de outubro de 2017. “As vinhas não viraram cinza”, recorda Beatriz Cabral de Almeida, “mas até maio não sabíamos se essas vinhas iriam renascer e abrolhar, ou se esse abrolhamento iria dar cachos. Algumas das plantas que lançaram sarmentos não lançaram cachos. Outras lançaram cachos mas muito pequenos, sem a qualidade necessária”. A decisão poderá englobar “a replantação de alguns pés” ou apenas “esperar para ver se os pés que este ano não produziram vão dar cacho para o ano”.

A vindima que agora terminou foi bastante atípica, refere a enóloga. “Costumamos vindimar primeiro os brancos e depois os tintos; este ano a colheita foi intercalada e só no final, em meados de outubro, acabamos os brancos”. A Quinta de Carvalhais registou em 2018 maior quebra nos tintos que nos brancos, sobretudo na Tinta Roriz, provocada pela seca e pelo escaldão, mas também como reflexo dos incêndios do ano passado. Porém, em simultâneo, “o clima fez uma monda natural na vinha que originou maior concentração nos bagos, pelo que teremos um ano muito bom”.

Beatriz Cabral de Almeida considera que “tudo nasce na vinha”. “Não podemos esquecer que estamos numa região em que, a par da Bairrada, começamos a vindima mais tarde; se por um lado, temos calor, temos que ter cuidado com as chuvas do equinócio”. As vagas de calor e a ocorrência de anos cada vez mais quentes levam ao redobrar da atenção “ao que a planta nos diz”. Vindimar algumas castas mais cedo ou não efetuar as desfolhas que por vezes são necessárias para apressar o ciclo, no sentido de proteger as uvas, são algumas das medidas adotadas. Poderá ainda verificar-se a introdução da rega nas parcelas onde tal ainda não aconteceu, complementa.

A adega e os vinhos

Como referido, foi logo após o início da aquisição da Quinta dos Carvalhais que a Sogrape decidiu avançar para a construção da adega. O projeto foi “pensado e construído respeitando a lei da gravidade”, explica Beatriz. “A receção das uvas é feita no topo e estas são encaminhadas suavemente para os andares inferiores, para que não sejam danificadas até chegarem às prensas, no caso dos brancos, e às cubas, no caso dos tintos”.Com potencial para receber mais de 200 toneladas de uva diariamente, a adega de Carvalhais tem uma capacidade de cubas de fermentação, armazenagem e tratamento de vinhos em aço inox num volume total superior a 65 mil hectolitros. Porém, novos investimentos estão a ser equacionados e desenvolvido, no sentido de dotar a adega de maior capacidade de experimentação em microvinificações. Em castas como, por exemplo, a Alvarinho, que resiste ainda em Carvalhais desde o final da década de 80, ao contrário da variedade Loureiro, que não teve o comportamento inicialmente estimado – mas que, no entanto, deu origem no início do milénio a um vinho Loureiro-Bical que, assegura quem o provou recentemente, está ainda em grande forma! A quinta tem também um armazém de barricas de madeira de carvalho para estágio, onde repousam, entre outros, os vinhos brancos de vários anos cujo lote dá origem ao Quinta dos Carvalhais Especial.

Os vinhos da Quinta de Carvalhais são definidos por Beatriz Cabral de Almeida como “versáteis”, uma vez que se prestam “a diferentes momentos de consumo”. Nas suas palavras, “a acidez e frescura” que lhes são inerentes “conjugam muito bem com a gordura e complexidade de muitos pratos da nossa gastronomia”. Pelo facto de serem vinhos elegantes, “casam com alimentos mais simples como cogumelos, espargos ou alcachofras”, nota. O grande objetivo da enóloga é “colocar nos vinhos tudo o que vemos na paisagem”. A sua maior conquista – e o maior elogio que confessa que lhe podem fazer - dá-se quando alguém abre “uma garrafa de Carvalhais no outro lado do mundo e diz que sente aquilo que sentiu quando visitou a quinta”. E não é pouca coisa…

Fotos: Pedro Costa / n3ws