Amêijoa e vinhos: Harmonização

Fotografia: Fabrice Demoulin
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Indiscutivelmente, as lindas conchinhas das amêijoas-boas Ruditapes decussatus encerram no seu interior um dos mais intensos e deliciosos sabores a mar. A textura carnuda, macia, ainda que resistente à mordida no ponto exato, é irresistivelmente sensual. E o caldinho que elas libertam ao abrir, quando se rendem ao calor dos tachos, é inigualável e insubstituível em diversas receitas ao redor do mundo. Como pensam os sommeliers perante um convidativo prato de amêijoas? 


Devemos acompanhá-las com vinhos igualmente sápidos, minerais, com os aromas e sabores marinhos? E quais são os elementos a evitar nos vinhos para uma harmonização impecável, daquelas que enalteçam o carácter único e saliente desse paradoxalmente tímido molusco, escondido entre conchas e enterrado na areia e lodo de águas salobras?

Uma importante ressalva quanto à espécie. Se vamos tratar da harmonização de vinhos com estes icónicos bivalves, é importante perceber que a amêijoa-boa ou “vongola verace” em Itália é realmente a boa e verdadeira. Embora da mesma família de moluscos Veneridae, as amêijoas filipinas e japónicas invadiram o Mediterrâneo e a nossa costa, mas entregam muito menos potencial gastronómico. Felizmente, não é necessário ser biólogo marinho para reconhecer as suas diferenças anatómicas. Embora as cores das conchas sejam muito variáveis intraespécies, as amêijoas-boas costumam ser mais alongadas, anguladas e maiores. As Ruditapes philippinarum, por sua vez, são mais arredondadas e com as ranhuras radiais de crescimento mais marcadas. A maior diferença, contudo, está no interior das conchas, no aspeto e no sabor. As “boas” apresentam seus dois sifões alongados e independentes, ao contrário dos sifões unidos das estrangeiras. A carne das nossas amêijoas autóctones é mais alva e tenra, e tende a ficar muito mais suculenta com a cozedura no ponto certo, logo após a abertura das conchas. O sabor a mar é mais refinado, seu salgado menos agressivo e a sua “doçura” é superior. 

Outras características importantes das amêijoas-boas passam pela sua carga de iodo, de gorduras insaturadas e de umami. Os nossos suculentos bivalves apresentam uma das maiores concentrações de iodo de todos os animais marinhos, até mesmo do que a do bacalhau (120 microgramas por 100 gramas aproximadamente, contra 110), no qual o iodo encontra-se concentrado pelo processo de salga. Isso exclui qualquer tinto da nossa partida enogastronómica, a não ser que alguém aprecie chupar moedas velhas como rebuçados. Essa alta carga de iodo pode metalizar inclusive os brancos e rosados mais fenólicos, e mesmo os aportes de taninos elágicos provenientes do amadurecimento em carvalho. Vimos também no artigo sobre a harmonização com os ouriços-do-mar na Revista de Vinhos nº 344 que, para alimentos tão ricos em iodo, algumas castas como a Riesling, a Alvarinho e a Loureiro, ricas em alfa-pineno, ajudam a carregar os sabores marinhos iodados no retro-olfato.

Em termos de gorduras totais, as amêijoas apresentam um baixíssimo conteúdo de aproximadamente 2g por 100g, ainda que uma parte importante dessa gordura seja da poli-insaturada ómega-3, mais do que no salmão, por exemplo. Ótimo para a saúde, complicado para os vinhos que apresentem qualquer teor de ferro significativo, conforme vimos no artigo sobre os ouriços-do-mar. Estes óleos ganham contornos não muito convidativos de “lixo de mercado de peixe” quando encontram mesmo pequenos traços de ferro, algo acima de 5 miligramas por litro, nos vinhos. E em quais deles? Sobretudo nos tintos -  nos quais há o contacto com engaços, cascas e sementes e as uvas sofrem esmagamentos, macerações e prensagens mais agressivas, resultando em teores maiores de ferro - ou em vinhos de solos ricos em ferro, como em alguns padrões de solos vulcânicos ou xistosos.

Finalmente, analisando o altíssimo conteúdo de glutamato das amêijoas, acima de 200mg em 100g (mais do que nos camarões e o dobro dos ouriços-do-mar), podemos afirmar que os apetitosos bivalves são uma bomba de umami, o quinto sabor essencial. Conforme vimos no nosso artigo sobre a harmonização de vinhos com atum, na Revista de Vinhos nº 345, a presença de umami deixa os vinhos mais amargos, duros e secantes, atenuando a sua fruta e eventual doçura. Realça dessa forma o lado da dureza dos vinhos e atenua o lado da maciez no equilíbrio. Por isso, devemos escolher vinhos mais frutados, generosos no álcool e na maciez, e menos tânicos e ácidos com as nossas amêijoas-boas recheadas naturalmente de umami.

Em conclusão, precisamos de enxugar a suculência natural das amêijoas-boas e a suculência/untuosidade que normalmente envolve o seu preparo gastronómico com o álcool do vinho, nunca com os seus taninos. Como esse precioso bivalve é riquíssimo em iodo, gorduras poli-insaturadas e umami, qualquer presença fenólica no copo será imediatamente realçada e puxada para fora do equilíbrio, mesmo que proveniente apenas do amadurecimento em madeira.

Essa é a imposição da teoria da harmonização: temos que procurar vinhos brancos com uma boa alcoolicidade, sem carvalho, sem maceração pelicular e saber que todos os seus elementos do lado da dureza - acidez, sapidez, mineralidade - serão evidenciados pelas amêijoas na harmonização.


Preparos clássicos


As onipresentes amêijoas à Bulhão Pato ficam bem melhores quando preparadas com as amêijoas-boas do que com as suas parentes orientais: é impossível fazer um grande vinho com uvas que não sejam excecionais. E a combinação dos alhos refogados em azeite e coentros, e um - jamais excessivo - toque de limão deixam as nossas protagonistas absolutamente irresistíveis. Para este preparo envolto em elementos aromáticos precisamos de um branco igualmente perfumado. Um Alvarinho com álcool nos 13º ou acima é sempre uma escolha inteligente. A sua intensidade aromática e suas notas terpénicas, incluindo o pineno, conversam animadamente com o iodo do prato, prolongando a ode às ondas do mar. E a mineralidade granítica típica dos vinhedos minhotos é realçada pelo umami das amêijoas. Um Fernão Pires perfumado e macio, dos solos calcários da região de Lisboa, é outra sábia escolha.

Para uma experiência mais minimalista das amêijoas apenas abertas ao vapor, de forma a apreciarmos a sua beleza natural, é necessário reduzir o volume aromático do vinho. Uma das regras mais básicas da harmonização, consensual em todas as escolas, é de que a carga aromática do prato deve ser equivalente à carga aromática do vinho. Afinal, deve haver diálogo no casamento, um monólogo não traz futuro à relação. Uma casta que amo e provo cada vez mais é a Arinto. Que gigantesco potencial. E o seu caráter mais sóbrio de fruta, “savoury” como dizem os ingleses, torna-a um ‘joker’ à mesa, envolvendo os sabores do prato sem nuca dominá-los. Arintos incrivelmente gastronómicos abundam da costa de Lisboa à Bairrada, passando pelo Tejo. Para as amêijoas-boas ao natural, gosto particularmente de um vinho da região histórica de Bucelas, assente sobre solos de marga e calcário duro do período Jurássico, solo rico em fossilizações de... bivalves! Recentemente provei um Quinta da Murta de Bucelas com as amêijoas apenas abertas no seu próprio caldo e o resultado foi inspirador. 

Fora de Portugal, as amêijoas-boas entram em diversos pratos icónicos ao redor do mundo, mas eu citaria dois particularmente famosos, o “spaghetti con le vongole” italiano e o “clam chowder” norte-americano. Quando vivi em Itália, uma das massas que mais provei com diversos perfis de vinhos foram os esparguetes finalizados dentro do caldo das amêijoas-boas, as “vongole veraci”, abertas num refogado de alho e piri-piri seco no azeite, com vinho branco e salsinha fresca. Embora típico da região da Campania, cuja capital é Nápoles, esse prato é amado e executado em todas as regiões italianas, do sul ao norte do país. De todas as dezenas, ou talvez centenas, de vinhos que provei com esse prato, a mais inolvidável experiência foi em uma harmonização regional com um Greco di Tufo de um “cru” específico, um grande branco de uma casta milenar plantada em solos calcários (ou vulcânicos) no interior da Campania. O seu calor alcoólico enxugava a untuosidade e suculência do prato à perfeição, o perfil e intensidade mediterrânica estavam em uníssono com os sabores do prato e a fina chancela mineral dos solos calcários era exaltada pelo umami. 

O “clam chowder”, por sua vez, apesar de todas as suas variantes regionais, é um rico creme de amêijoas com batatas, vegetais e toucinho, marca registada da Nova Inglaterra. Apesar de toda a cremosidade e estrutura da receita remeter-nos a um bom Chardonnay americano trabalhado em barricas, vamos ter sempre em consideração que o lado “briny” ou salobro do prato é um mar de iodo que fará emergir qualquer madeira na qual o vinho estagiou. Por isso muitos bons sommeliers americanos sugerem outros vinhos brancos ricos, com potência para os sabores do “chowder”, álcool para detergir a untuosidade, mas sem madeira, para este prato clássico: Viognier, Chenin Blanc, Riesling de colheita tardia, entre outros.


Concha revela concha


Com a desculpa de ratificar novamente a teoria enogastronómica acima discutida, abri recentemente umas fabulosas amêijoas-boas da ria de Alvor ao vapor e servi-as com dois vinhos brancos de perfis opostos, mas de teores alcoólicos similares de 13º. Um Chablis austero, com fruta contida de clima frio, bela frescura e mineralidade de solos calcários “kimmeridgianos” com fossilização de minúsculas ostras Exogyra virgula, ao lado de um branco alentejano de alta qualidade, baseado na casta Arinto, dotado de fruta mais exuberante, alguma maceração pelicular e discretíssima passagem em madeira, oriundo de vinhas plantadas a 450 metros em solos magmáticos como dioritos e também xistosos. Apesar dos dois belos brancos terem conseguido a correta contraposição à suculência/untuosidade do prato, a copiosa carga de iodo e umami dos bivalves trouxe para fora do equilíbrio previamente elogiável do vinho alentejano todos os fenóis da maceração pelicular e dos aportes da madeira, no palato e no retropalato, que se metalizou. 

Não adianta disfarçar, estas conchinhas denunciarão qualquer presença fenólica ou ferruginosa nos brancos, nos rosés, e imagine-se então nos tintos! O Chablis, todavia, vinificado em tanques de inox, propiciou uma perfeita justaposição de sabores. Logicamente, o umami deslocou o equilíbrio do vinho ainda ligeiramente mais para o lado da dureza, mas de uma forma prazeirenta, evidenciando a tensão na boca e principalmente a sua mineralidade calcária. A harmonização construiu uma ponte entre as conchas de hoje e as conchas de 155 milhões de anos atrás, do Jurássico Superior, na cozinha do meu apartamento. Como é bom ser sommelier…