Amêijoas ... à Bulhão Pato

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

Quando chegam os primeiros dias de sol, há um chamamento que se impõe: cascaria. Sorver estes moluscos bivalves ao ar livre (se bem que nos tempos que correm, só se for em casa...) é um prazer tão simples quanto enorme. Temos alma de concheiros e poucos serão os portugueses que torcem o nariz à amêijoa, ao lingueirão, mexilhão, ostras ou mesmo ao “pé de burro”. Comidos com a mão, ao pé da praia, apreciando os seus sucos salinos, a par de um vinho branco fresco e leve, bem mineral, é um petisco de truz. Em tempos de quarentena, a praia fica mais longe, mas o prazer de as confecionar e saborear, vale a pena. O resto vem com a imaginação e um vinho branco de acidez vibrante. O sabor subtil, entre o salino e adocicado, a textura suculenta e a maciez, fazem deste bivalve bastante proteico, rico em vitaminas e minerais, uma tentadora proposta.


Sugerimos uma receita clássica que facilmente se pode executar em casa, nesta altura de confinamentos e quejandos: “Amêijoas à Bulhão Pato”. Apesar de a autoria da receita ser atribuída ao escritor “gourmet” do século XIX e pulular por bares e restaurantes ou nas nossas casas, pensa-se que terá sido João da Mata, chefe de cozinha do velho Hotel Bragança (tantas vezes citado na obra de Eça de Queirós), quem homenageou Bulhão Pato, atribuindo o seu nome à receita. Contudo, ela não consta do livro de Mata, apesar de serem ambos amigos e contemporâneos. Bulhão Pato criou, isso sim, a “lebre à Bulhão Pato”, publicada, em 1870, no livro “O Cozinheiro dos Cozinheiros”, editado por Paulo Plantier. Outros dizem que terá sido o cozinheiro de um restaurante que o escritor frequentava, na Rua da Prata, a batizar assim o prato. Do cozinheiro não reza, contudo, a história… No entanto, Albino Forjaz Sampaio, em “Volúpia a Nona Arte: Gastronomia”, publicado em 1940, fala das “amêijoas à Bulhão Pato” como o prato mais popular da sua vida gastronómica. Não há fumo sem fogo.

Mas vamos ao que interessa. Para preparar este prato, o melhor mesmo é que as amêijoas estejam sem areias, pois não há coisa pior que trincar areia quando se come cascaria. O enlevo cai automaticamente por terra. O melhor é, mais uma vez, optar pelas depuradas, até por razões de controlo sanitário e microbológico. Do ponto de vista organolético não haverá grandes diferenças, talvez apenas no pH, mas é de somenos importância. Quando as adquirir peça para ser apresentada a data de captura/recolha, fundamental para avaliar o seu estado, já que as amêijoas deverão ser cozinhadas vivas. O sabor e crescimento são condicionados pela salinidade, composição do sedimento, concentração de oxigénio dissolvido e a qualidade do alimento. Daí que o “environ” onde habita seja tão importante. 

Dada a sua natureza filtradora, acumulam nos tecidos compostos químicos e micro-organismos presentes no meio ambiente que indicam a presença de poluentes, permitindo aquilatar a qualidade da água. São, por isso, uma espécie bioindicadora e, estando dependentes da presença de microalgas para se alimentar, também estão sujeitas às marés vermelhas que são tóxicas. O melhor mesmo é optar pelas amêîjoas depuradas e certificadas, de forma a eliminar bactérias, um processo que pode demorar 36 horas. Só que quem os apanha sem licença ou vende de forma ilegal não os leva aos centros de depuração e assim o risco de contaminação é muito elevados. Deve, assim, lavar em várias águas e deixar, de preferência, seis horas cobertas com água temperada de sal (seis colheres de sopa por litro) ou água do mar.

Apesar de muita gente fazer um refogado primeiro para preparar este prato, está errado. Como está errado juntar vinho branco. Apenas precisam de azeite, dentes de alho cortados ao meio e coentros, umas gotas de limão e pimenta. Mais nada.Primeiro, frita-se o alho no azeite, juntam-se as amêijoas lavadas e tapa-se o tacho até abrirem. Uns minutos e está pronto. Só precisam de adicionar, já cá fora, coentros e sumo de limão.

Este clássico é muito bom; no entanto, o melhor mesmo é degustá-las ao natural, abertas ao vapor. Até porque a receita tão comum, muitas vezes serve para disfarçar a origem da amêijoa, pois começa a ser muito raro encontrar as melhores (e obviamente mais caras). O que nos aparece habitualmente no prato é a japónica ou vietnamita, infelizmente. Mais uma vantagem de fazer a receita em casa. Assim, tem a certeza da origem do produto.

O alho e os coentros podem ser companheiros interessantes mas, para a apreciar na sua plenitude, a condição ideal é, francamente, comê-las assim, ao natural, cozinhadas vivas obviamente, a vapor ou tapadas com água do mar e com o menor tempo de cocção possível (evitando assim o risco de ficarem com textura coriácea, tipo pastilha-elástica e lá se vão as amêijoas). Ou seja, quando abrem, estão prontas a servir de imediato e a consumir. O mesmo se aplica aos mexilhões, berbigões ou lingueirão. Quando muito, umas gotas de limão.

Nos estuários e no mar de baixio


Carnudas, suculentas e macias, não há como lhes resistir. A melhor é a chamada amêijoa-boa, cristã ou fina – também batizada como real, rainha, verdadeira ou legítima. Até parece impossível, mas é no lodo que elas gostam de estar. Crescem sobretudo nos estuários e apanham-se com ancinhos e “raspadeiras”, pois é cavando no lodo e pedra que se consegue chegar a estes ansiados bivalves. As amêijoas gostam particularmente de baías abrigadas, estuários ou lagoas, crescendo na zona entremarés, no chamado mar de baixio, exposta ao ar na maré-baixa, ao abrigo de vento e correntes fortes. Com cor castanha marmoreada e raiada de negro, de concha mais delicada comparativamente às outras, a amêijoa-boa apresenta estrias radiais bem desenhadas, sendo substancialmente carnuda e saborosa.

As amêijoas-boas (“Ruditapes decussatus”, nome originado pelo entrecruzamento na parte de trás, que desenha um quadriculado, forma de identificar a espécie) são mesmo as melhores e encontram-se a 15-20 cm. da superfície, enterradas no lodo.

Não é muito entusiasmante assistir à sua apanha na ria, digo-vos já. Uma massa negra e lamacenta que suja as mãos e os pés envolve os bivalves, sendo o melhor usar luvas e galochas. São espécies que vivem principalmente em fundos arenosos e comuns nas águas salobras de estuários e outros sistemas lagunares costeiros. Mais curiosa é a apanha do lingueirão, por exemplo, que se consegue apenas com… sal refinado...e sem qualquer tipo de utensílio. Mas isso ficará para outras incursões.

Há várias técnicas para a captura, desde o arrasto de fundo às dragas ou simplesmente a apanha à mão. No caso do arrasto, é usada a ganchorra. A arte é constituída por um saco de rede cuja abertura está ligada a uma estrutura rígida, de forma e dimensões variáveis, dotada, na parte inferior, de um painel que revolve o fundo. Os bivalves ficam retidos numa espécie de saco ou crivo que permite a saída da água, areia e lodo.

Muito sabor e poucas calorias


Excelente fonte de fósforo, zinco, selénio, vitaminas A, B12, B2, B3, ferro, manganésio e iodo, devem estar vivas no momento da compra. Certifique-se de que as conchas estão todas em bom estado e bem fechadas. Se por acaso estiverem entreabertas, deverão fechar-se ao toque. O odor deve ser agradável e, se as quiser congelar, faça-o em cru, já que se forem congeladas cozinhadas ficam rijas.

A conservação dura até dois dias na parte baixa do frigorífico envoltas num pano húmido, mas de preferência deve, obviamente, comê-las no próprio dia. Sendo uma das melhores fontes de ferro (uma porção contém quatro vezes mais ferro que o fígado) é também baixa em calorias. Cerca de 100 gr. amêijoas (aproximadamente oito grandes) possuem apenas 150 calorias, sendo 26 gr. de proteínas. O sabor e crescimento são condicionados pela salinidade, composição do sedimento, concentração de oxigénio dissolvido e a qualidade do alimento. Devem ser carnudas e perfumadas, num misto de doce e salgado.

Molusco da família dos “Veneridae”, é o bivalve com maior valor comercial na Europa, sendo uma espécie de barómetro da qualidade ambiental, como avaliação da toxicidade. Daí ser tão importante saber a sua proveniência. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera disponibiliza no seu portal informação atualizada sobre a interdição da apanha de bivalves por causa das toxinas marinhas, pelo que deve ser sempre consultado.

No Algarve, cultiva-se cerca de 90% da produção de amêijoa-boa em Portugal. Mas ela distribui-se ainda pela ria de Aveiro, Tejo, Lagoa de Óbidos e Foz do Sado. No exterior, é na França, Espanha, Irlanda e bacia do Mediterrâneo, sendo que a invasão da amêijoa japónica tem vindo a dizimar as populações no Tejo. Já invadiu a ria Formosa e terá entrado pela mão de produtores espanhóis. Muitas vezes, a sua apanha não está proibida porque acumula menos toxinas resultantes do fitoplâncton e é menos vulnerável aos metais pesados do que os outros bivalves. Aliás, na ria Formosa a situação tem vindo a ser quase trágica, pois o assoreamento tem contribuído também para o desaparecimento de ostras e amêijoas. A barra aberta alterou a dinâmicas locais, permitindo a entrada de areia e o cordão dunar frente a Cacela quase já não existe. A sua dimensão tem a ver com a idade, daí que quanto maiores mais velhas e também mais caras... Em arroz ou cataplana, no xerém e com carne de porco ou perdizes fazem também excelentes casamentos. Aventure-se na tarefa e verá que não se arrepende.

AMÊIJOAS À BULHÃO PATO

2 kg. de amêijoas
4 dentes de alho
1 molho de coentros
1 limão
2 dl. de azeite
Pimenta q.b.

Numa caçarola grande e baixa, leve ao lume o azeite e os dentes de alho cortados ao meio. Quando os alhos estiverem bem louros, junte os coentros bem picados. Dê-lhes uma entaladela durante alguns segundos, mexendo, acrescente então as amêijoas, que, depois de bem lavadas em várias águas, estiveram, de preferência de véspera (mas pelo menos durante seis horas), num recipiente apenas cobertas de água temperada de seis colheres de sopa de sal por litro. Tempere com pimenta moída na altura, tape e leve a caçarola ao lume, sacudindo até as amêijoas abrirem todas. Regue com o sumo de limão e sirva imediatamente.