Essencial, com e sem máscaras 

Fotografia: Fabrice Demoulin
Miguel Pires

Miguel Pires

Tenho-o dito nos últimos tempos e creio não ter sido o único (ou o primeiro) a fazê-lo: na atual conjuntura pós-Covid 19, os restaurantes com maiores hipóteses de sobrevivência são aqueles que têm uma identidade e personalidade mais vincadas e os que antes e durante a pandemia, conseguiram criar um sentido de comunidade em seu redor.  


O Essencial, do chefe e proprietário André Lança Cordeiro, é um dos que reúne esses requisitos. Não porque a sua proposta seja única, mas porque consegue apresentar uma cozinha de influência francesa (seja a clássica ou a mais contemporânea de bistrot) com certa personalidade. Gosto do toque aprimorado das suas propostas (mesmo que com uma ou outra imperfeição), dos bons produtos que utiliza e da forma como conjuga um certo classicismo, por vezes até fora das tendências atuais, com outras opções mais contemporâneas. Ainda para mais, fá-lo num espaço acolhedor e por um preço acessível. 

André Lança Cordeiro fez formação em França e já era chefe de cozinha na Suíça quando o diretor de um grupo hoteleiro o desafiou para comandar a cozinha do Hotel Palácio do Governador, em Lisboa. Apesar de um certo esforço de comunicação, essa etapa não foi lá muito bem sucedida. Em parte, estou em crer, por ausência da tal característica que referi no início: falta de personalidade e ausência de proximidade do projeto com a comunidade (o que é uma tarefa sempre difícil para muitos hotéis). 

Porém, quando se mudou para o Local, um restaurante mais pequeno e personalizado, Lança Cordeiro acabou por conquistar uma certa clientela, bem como a própria imprensa. E isso foi-lhe útil, quando conseguiu finalmente abrir o seu projeto pessoal, em julho de 2019, na Rua da Rosa, numa parte menos agitada do Bairro Alto. Quando a pandemia do coronavírus lhes bateu à porta, o vento corria-lhes de feição e após algum tempo fechados, para tentarem perceber o que poderiam fazer, acabaram por decidir, como tantos outros, começar a fazer comida para fora. O sucesso acabou por surpreendê-los, de tal modo que mantiveram esta vertente já depois de reabrirem ao público, com todos os constrangimentos conhecidos, no início de junho.  

O Essencial acabou por ser um dos primeiros restaurantes que visitei neste período de reabertura e, para dizer a verdade, não foi tão estranho quanto imaginei. Afinal, colocar a máscara e desinfetar as mãos com álcool-gel antes de entrar no espaço passou a ser algo de trivial. Sim, causa alguma estranheza ser atendido por alguém igualmente de máscara (neste caso obrigatoriamente e o tempo inteiro). Todavia, acabamos por nos habituar, mesmo que, por vezes, tenhamos que pedir ao empregado para repetir o que diz, ou tenhamos de adivinhar a expressão no seu rosto pelo que os olhos transmitem. De resto, uma sala acolhedora a 50% é algo que prejudica (e muito) o restaurante, mas não o conforto do cliente - antes pelo contrário. Já uma carta curta poderá trazer alguns constrangimentos a dietas diferentes – se for vegetariano (ovo-lacto) a cozinha consegue responder facilmente, mas no caso de ser vegano ou intolerante a glúten, por exemplo, convém avisar com antecedência. 

No dia em que lá estivemos havia cinco entradas, três principais e três sobremesas para compor um menu de três pratos (35 euros), ou um de seis (55 euros). Escolhemos esta segunda opção, que incluía três entradas, dois principais e uma sobremesa. 

Comida sem máscara

Começámos com uma salada de melancia, pimentos e tomate, uma entrada fresca, estival e plena de sabor. Como dizia quem me acompanhava, “parecia feita para acompanhar sardinha assada”. 

Imaginem agora um ovo coberto e frito num ninho de tiras de massa brik, servido com crème fraiche e ovas de arenque. Pensem em todo aquele sabor envolvente da gema mal cozida misturada com uma massa muito fina crocante e o contraste deleitoso da nata fresca, por um lado, e do toque salino e preciso das ovas, por outro. Será preciso explicar mais? (Certo, com um bom caviar ficaria ainda melhor, mas as consequências para o bolso não seriam as mesmas). 

Menos impressionante, mas ainda dentro do reino do sabor, o creme de couve flor frio servido com um suave escabeche de mexilhões, resultou numa combinação elegante que serviu de ponte para os pratos principais. Aqui chegados, primeiro veio o peixe galo com alcachofra e molho de champanhe. Este é um dos melhores peixes dos nossos mares e estamos na sua época. Porém, a cocção do lombo alto (a revelar ser de um espécime de bom porte) que nos foi servido não foi perfeita, com o interior no ponto, mas com a parte mais próxima da superfície demasiado passada. As alcachofras, cozinhadas “à la barigoule” - um estufado provençal, com pedaços de tomate e de azeitona, combinavam muito bem, tal como o molho, mas eram um pouco fibrosas (na parte do talo).  

Já a última proposta, a codorniz, fois gras e salsifis, elevou de novo a refeição para o patamar superior. Parecia pouco na quantidade, mas nada disso. A perna e a coxa da ave foram bem recheadas com o foie gras e cogumelos. A ajudar à festa, além do tubérculo e de um puré de batata rústico, vinha um molho sublime, cujo segredo, contou o chefe, está em acrescentar uma demi-glasse (caldo reduzido) de vaca ao molho elaborado com as carcaças da codorniz.

Para finalizar, escolhemos de sobremesa o Paris-Brest, clássico da pastelaria francesa feito com massa-choux e creme de praliné, criado em 1910 pelo pasteleiro Louis Durand para comemorar a corrida de bicicletas Paris-Brest-Paris. Já o tinha comido outras vezes e apreciara a mestria de Lança Cordeiro na sua confeção e na forma equilibrada com que o recheava. Contudo, neste caso, como final de refeição, pareceu-me um pouco pesado. Mas nada de muito grave. A menos que se seja muito guloso e aí marcha tudo, a solução passa por deixar uma parte ou retirar uma porção do creme. 

Além da cozinha do Essencial, gosto muito da carta de vinhos da responsabilidade do Daniel Silva - que é também o responsável pela sala. Não é extensa, mas tem personalidade. Privilegia produtores de vinhos de intervenção mínima, portugueses e estrangeiros, e sempre com opções para diversos gostos e sensibilidades. A refeição foi acompanhada pelo Nossa Calcário 2018, um Bairrada da casta Bical, de Filipa Pato e William Wouters – um branco extraordinário cada vez mais preciso e versátil. Bebemos ainda, a copo, com a codorniz, um Fedellos do Couto, Lomba dos Ares, um tinto de Mencia (a Jaen do Dão) da Ribeira Sacra (Galiza), muito agradável: leve, de fruta aberta, cereja, mas com estrutura e certa tensão. Nitidamente dois vinhos sem maquilhagem. 

Para finalizar, uma palavra para o serviço. A equipa de sala é mínima (e, nesta fase, reduzida a uma pessoa) mas os cozinheiros dão apoio entregando alguns pratos. Agrada-me esta opção, sobretudo quando corre bem, como foi o caso, quer no timing de entrega, quer no tirar de dúvidas quando elas surgem. E a máscara? Bom, é algo que temos de nos habituar. Felizmente, no Essencial, ela não é postiça. Apenas vem na face de quem nos atende e não na comida. Nem nos vinhos.