Se a França pode vangloriar-se dos seus 500 ou mais queijos, Portugal conta com mais de 500 doces típicos nesta guerra gulosa. Em Esposende há um destes doces de origem conventual, as Clarinhas de Fão, que surpreende pela sua deliciosa simplicidade e também pela harmonização inusitada com vinhos secos.
Se tivesse provado um doce novo português a cada semana desde que me mudei para Portugal, há dois anos e meio, provavelmente ainda não teria conhecido metade das gulodices açucaradas que são eximiamente executadas neste pequeno país. Portugal continua a impressionar-me, por concentrar tanta diversidade cultural, gastronómica e enológica num retângulo tão pequeno, ainda mais para quem provém de um país continental como o Brasil. Das mais de 300 castas autóctones, mesmo para um sommelier profissional que prova milhares de vinhos por ano, estou longe de conhecê-las todas. E, no universo da doçaria regional portuguesa, e em particular dos doces conventuais, a panóplia é também desconcertante para um estrangeiro.
Muitos destes doces, todavia, possuem uma base comum de ovos – sobretudo as gemas -, açúcar e amêndoas. Já li versões diferentes sobre a origem do excedente de gemas quando muitos destes doces foram concebidos e parece-me que o facto de Portugal ser o maior produtor de ovos da Europa ao longo dos séculos XVIII e XIX - e fornecedor de claras para colagem de vinhos aqui e alhures, auxiliares na eliminação dos coloides em suspensão -, é a versão mais plausível.
Somem-se às gemas excedentárias o açúcar a chegar em copiosas quantidades das colónias portuguesas e o tempo livre nos claustros dos mosteiros, e temos o nascimento dos doces conventuais, nas suas diversas expressões, a partir de ingredientes simples e comuns a todos. Amêndoas, obreias, doces de chila ou gila, e especiarias, foram aos poucos agregados pelas doceiras e resultaram nas inúmeras variações regionais que encontramos atualmente.
Harmonização da doçaria conventual
O princípio que governa a harmonização de vinhos com doces ou sobremesas é o da concordância do grau de doçura de ambos. Normalmente, não recomendo que se infrinja esta regra, a qual provou por diversas vezes ser extremamente eficaz nas harmonizações ao longo da minha carreira. Ao contrário da “tendência para o doce” de um ingrediente ou prato, que pode e deve ser harmonizada com imenso sucesso pelo princípio da contraposição, a “doçura propriamente dita” requer vinhos igualmente doces e a harmonia rege-se então pelo princípio da concordância.
Explicando melhor, pratos ricos em amido, como os cereais e os seus derivados, vegetais como as cenouras, abóboras, feijões e batatas, crustáceos de um modo geral, moluscos como as vieiras e gambas, ou fiambres e salsichas, carregam aquela delicada perceção adocicada, a “tendência para o doce”, que agradece o confronto de acidez, sapidez mineral ou gás carbónico no vinho. Estes elementos, que surgem do lado da dureza na balança de equilíbrio do vinho, trazem vibração e tornam os casamentos muito estimulantes.
Desta forma, a não ser que as sobremesas ou doces sejam bastante carentes de açúcares e outros elementos que agreguem doçura, como o mel, xarope, chocolate e licores, ou mesmo adoçantes artificiais, apresentando mais uma “tendência para o doce” do que “doçura propriamente dita”, vamos sempre pensar em vinhos dotados com o mesmo grau do sabor essencial doce, ou seja, usar o princípio da concordância e não o da contraposição, para obter uma harmonia adequada.
Exemplificando, e conforme discutimos anteriormente na Revista de Vinhos, um leve e aerado pão de ló de Margaride, com os seus 325 gramas de açúcar por quilo de produto, casa muito bem com um Porto branco simples e frutado, de entrada de gama, na categoria Seco (entre 40 e 65g/l de açúcares residuais) ou no máximo Meio-seco (65-90g/l). Já um riquíssimo e dulcíssimo pudim do Abade de Priscos ostenta praticamente o dobro de açúcares na sua composição e, pelo princípio da concordância, temos que galgar a escada da doçura e atingir os níveis mais elevados de um Madeira Malmsey ou, mais consoante com o emprego do Porto na referida receita, servir-nos de um grande Porto de uma casa de estilo mais doce e generoso, como a Graham’s, para um “pairing” de arrancar suspiros. Sugiro o seu sumptuoso Tawny Port 30 Years.
Clarinhas de Fão
Não se sabe ao certo se a origem das clarinhas de Fão está nos conventos - é uma grande probabilidade -, mas certo é que, desde o início de 1900, uma senhora com o nome Clara vendia-as na vila de Esposende para curar problemas estomacais, amorosos ou simplesmente pela sua inerente delícia. Os seus descendentes dividiram-se e hoje, as pastelarias que herdaram ou fundaram, oferecem as clarinhas com nomes diferentes, histórias curiosas da autenticidade do doce e algumas diferenças na receita e no sabor: os pastéis de Fão, ou clarinhas, ou pastéis de Lili, ou pastéis de chila.
De um modo geral, as clarinhas são pastéis fritos em forma de meia-lua, elaborados com uma massa elástica e leve, que encapsula um recheio cremoso de doce de abóbora chila com gemas. Um polvilhado de açúcar em pó deixa a crosta externa crocante ainda mais atrativa. A proporção de aproximadamente 250 gr. de açúcar por quilo de clarinhas faz deste um doce conventual bem menos doce do que a maioria deles. E este facto, somado à crocância da fritura, explica muito bem por que razão um casamento inusitado por contraste e não por concordância, corriqueiro em Esposende, resulta tão bem na prática: casar as clarinhas com um Vinho Verde Espumante.
Testes
Pedro Alves é sobrinho-bisneto da senhora Rosália (Clarinha), quem começou a fazer os pastéis no início do século passado, “patenteou” e transmitiu a receita às gerações seguintes. À frente da Pastelaria Clarinha de Esposende, Pedro foi categórico quando lhe perguntei que vinho harmonizar com as suas famosas clarinhas: “Um espumante da região do Vinho Verde” e, como que seguro das teorias de harmonização vinho-alimento dos sommeliers, continuou: “Pois fazem o contraste necessário com os pastéis”. Tão convincente foi que incluí nos meus testes um belo espumante desta região verdejante - vamos a eles!
Provas e harmonizações
Porto Branco 10 Anos
Uma harmonização muito bem conseguida, por concordância. A segunda melhor no geral. Mesmo nível de estrutura e complexidade, e ainda que um bocadinho mais doce que as clarinhas, o Porto trouxe acordes mais graves e o seu lado de “nuttiness” foi lindamente realçado na melodia.
Carcavelos 15 Anos
A ideia era trabalhar com a concordância no nível de doçura e trazer um pouco mais de acidez e sapidez para o confronto, mas a potência e a complexidade do vinho estiveram sempre acima das clarinhas, num casamento algo conflitante.
Moscatel de Setúbal 20 Anos
A pior das harmonizações. Aqui a concordância não resultou de maneira alguma, pois o nível de doçura, complexidade e persistência gusto-olfativa do vinho estava nas nuvens, muito acima da delicada delícia das clarinhas. Por isso é muito importante regular o potenciómetro do vinho e do alimento, o grau de perceção de cada um, para lograrmos uma harmonização por concordância positiva. Uma linda dupla que não deu certo como casal.
Espumante Vinho Verde Loureiro
A harmonização campeã desta edição. As clarinhas estão naquele espaço discutido acima, entre a “tendência para o doce” e a “doçura propriamente dita” e por isso aceitam tanto o princípio da contraposição, no primeiro caso, como da concordância, no segundo. Por isso um Porto branco não muito doce entrou tão bem na concordância e estes espumantes brutos de Vinho Verde criam um contraste tão espetacular com elas, por contraposição. A acidez e a sapidez mineral granítica, enaltecidas pelo gás carbónico, “lavavam” cada assertiva mordida nas clarinhas. Um aviso de “perigo de comer clarinhas demais” deveria ser disponibilizado aos incautos que arriscam esta harmonização. Sábias palavras do herdeiro, Pedro Alves, sobre o contraste perfeito para suas preciosas clarinhas de Fão.