Harmonização: Fava-rica e vinho

Fotografia: Arquivo
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Vindo de um gigantesco país tropical onde se come de tudo o ano inteiro, fascina-me em Portugal acompanhar a sazonalidade dos ingredientes e das receitas e vinhos que farão companhia à mesa. Uma das minhas alegrias na primavera é encontrar nos mercados de Lisboa a fava fresca e prepará-la de diversas maneiras, com vinhos de caráter herbáceo que dialoguem com o “verde”, mas sem ressaltarem a sua dureza pelo inerente amargor das leguminosas.

 

 

Na Revista de Vinhos de maio de 2019 este sommelier levou-os ao redor do globo num artigo sobre a harmonização com as favas em diversas culturas, da Ásia às Américas, passando logicamente pela Europa, o seu berço. Como a Vicia faba é uma das poucas espécies da família das Fabacae, leguminosas como as vagens, ervilhas e feijões, que não vieram da América do Sul ou Central mas sim da bacia do Mediterrâneo, o seu emprego como base alimentar espraiou-se por diversos povos deste continente até a Ásia, séculos antes da descoberta dos feijões americanos Phaseolus vulgaris.


Portugal e Itália, aqui desde os antigos romanos, são os países mais apaixonados pelas favas que conheço, nos quais tive a sorte de viver. Prenúncio da primavera, dos dias lindos e de refeições ao ar livre, as favas merecem inúmeras preparações e ingredientes que contrastam com a sua doçura amilácea, como o salgado e especiado dos salames e do queijo Pecorino, da pancetta e das anchovas, em Itália, ou dos enchidos fumados, chouriços e bacalhau em Portugal. E também outros consortes que alinham com o perfil verde e primaveril das favas, como os coentros pelas nossas bandas, e a salsa, a menta ou mesmo os espargos verdes, na velha península italiana.
Este mês abordaremos uma receita muito prosaica e tão clássica de Lisboa dos sécs. XIX ao início do XX, talvez de origem galega, e “rica” já no nome, pois alimentava o corpo e alma da classe trabalhadora nas madrugadas da capital. Nesse preparo de simplicidade fulminante, temos toda a beleza natural das favas, apenas retocada pela aromaticidade dos alhos refogados no azeite e da pimenta-preta moída, a enaltecerem o seu perfil gusto-olfativo. Aproveitando a oportunidade, vamos explorar um pouco os vinhos herbáceos, sobretudo os brancos, que ecoam no cariz verdejante das protagonistas do mês.


Vinhos herbáceos


Nestes tempos de “lives” nas redes sociais, discorri recentemente numa transmissão sobre a casta Sauvignon Blanc, a terceira branca mais plantada globalmente, muito conhecida pelas suas expressões clássicas no Velho Mundo - Loire, Bordéus, Norte de Itália, - e no Novo Mundo, neste caso, indubitavelmente, mais pelos aromáticos e pungentes vinhos da Nova Zelândia. A Sauvignon Blanc nasceu no vale do Loire, no nordeste de França, e faz parte do eco-geogrupo Messile de castas. Quando levada para a região de Bordéus, num cruzamento espontâneo com a Cabernet Franc, a mãe Sauvignon Blanc gerou a célebre Cabernet Sauvignon, provavelmente no início do séc. XVIII. Essas castas do eco-geogrupo Carmenet, do qual fazem parte as duas Cabernets, a Carménère, a Merlot, a Petit Verdot, entre outras, e também a própria Sauvignon Blanc, têm como característica transversal ao seu perfil olfativo os intensos aromas herbáceos.

 
Os descritores clássicos que encontramos nos vinhos de Sauvignon Blanc e das castas da família Carmenet de pimentos verdes Capsicum annuum e outras espécies do género Capsicum, de pimenta verde Piper nigrum, de folha de tomate, hera, espargos enlatados, provêm de um grupo de compostos químicos que contêm nitrogénio, as alquila-metoxipirazinas, ou apenas pirazinas para os íntimos.  Estas foram descobertas nos pimentos por R. G. Buttery em 1969, estão presentes nos tecidos verdes das plantas, incluindo das uvas, e originam-se através do metabolismo de aminoácidos como estratégia de defesa química. À medida que as uvas crescem, o nível de metoxipirazinas herbáceas e de taninos adstringentes também sobe, para afastar os seus potenciais comedores até às sementes estarem prontas para serem disseminadas por pássaros e outros animais. O nível máximo de metoxipirazinas dá-se logo antes do pintor e depois decresce paulatinamente com o amadurecimento das uvas, deixando-as mais atrativas para os animais que dispersarão as suas sementes, agora já prontas para cumprir a sua função. Nessas castas supracitadas, todavia, a acumulação de pirazinas é muito grande, e maior ainda em situações climáticas e de solo que estimulam o vigor vegetativo da planta na estação de crescimento, sobretudo em climas mais frescos e menos ensolarados. Dado que são compostos muito estáveis, o nível de pirazina final nas uvas perdurará na fermentação e mostrar-se-á como o caráter herbáceo do vinho. As pirazinas mais encontradas nas Carmenets e na Sauvignon Blanc, em ordem crescente de poder aromático (decrescente de limiar de perceção olfativa em ng/l) são a ETMP (3-etil-2-metoxipirazina) com aromas predominantes a batata crua e pimentos verdes, a SBMP (3-sec-butil-2-metoxipirazina) que rescende a “verde”, pimentos e hera, a IPMP (3-isopropil-2-metoxipirazina) terrosa, a espargos enlatados e pimenta verde e, finalmente, a mais presente e fulminante, a IBMP (3-isobutil-2-metoxipirazina), muito “verde”, com pimentos, groselha espinhosa (gooseberry) e notas de bafio.


Curiosamente, uma fonte exógena de pirazinas nos vinhos provém das inofensivas joaninhas, insetos coleópteros que se alimentam de pragas agrícolas e estão associadas a uma agricultura sustentável, sem pesticidas sistémicos. As joaninhas são verdadeiras bombas de IPMP, usadas como defesa dos seus predadores, e não são precisas muitas destas, vinificadas acidentalmente com as uvas, para impregnarem um lote inteiro de vinho com a pungência herbácea e terrosa das suas pirazinas. 
Outra origem exógena de elementos verdes nos vinhos pode vir da presença de pinheiros e eucaliptos nas proximidades das vinhas, com os seus óleos essenciais a revestirem as películas das uvas e, consequentemente, a impactarem no perfil olfativo dos vinhos acabados. O famoso toque tónico de pinheiro dos vinhos do Dão e as denunciadoras notas frescas de eucalipto dos Carménères do Maipo e dos Cabernets de McLaren Vale em Austrália que o digam...


O caráter herbáceo nos vinhos de outras famílias de castas pode estar relacionado com outros compostos químicos, nomeadamente álcoois e aldeídos de seis átomos de carbonos (6C), originados sobretudo pela quebra enzimática de ácidos gordos contidos nas membranas das plantas. São compostos voláteis pré-fermentativos e dependem da casta, da madureza das uvas, dos tratamentos enológicos como a maceração pelicular, entre outros. Conferem aquele típico aroma de relva recém-cortada. Em inglês são chamados Green Leaf Volatiles (GLV), dos quais os principais são os álcoois hexanol, (Z)-3-hexenol e (E)-2-hexenol, e os aldeídos hexanal  e (E)-2-hexenal. Fazem parte também do sistema de defesa das plantas, ao alertarem os predadores de herbívoros, ao mesmo tempo que afugentam bactérias enquanto os tecidos danificados das plantas regeneram-se. O hexanol ou “álcool das plantas” é largamente empregado na perfumaria para conferir aquelas notas de relva fresca cortada, e o mais instável aldeído hexanal traz notas herbáceas menos pungentes, de frutas verdes. Em pesquisa publicada em 2006, José M. Oliveira et al. do Centro de Engenharia Biológica da Universidade do Minho detalharam a presença dos diversos álcoois 6C nas principais castas da região do Vinho Verde e suas proporções. A casta Loureiro possui não somente a maior quantidade destes GLVs, mas também em proporções totalmente diferentes das outras castas locais, o que garante o seu perfil herbáceo vincado e particular.


Pensando nessa “harmonia molecular” com as nossas favas ricas, consultei o Flavor Matrix de James Briscione e fiquei extremamente feliz ao confirmar que os aromas verdes, de natureza pura, clorofila, dos feijões verdes e favas estão associados à presença, sobretudo, do álcool hexanol, mas também ao aldeído hexanal. Para além da Loureiro, cuja presença destes GLVs já é bem conhecida, analisei as minhas notas de prova de vinhos brancos dos últimos três anos em que vivo em Portugal em busca dos descritores “verde”, “herbáceo”, “ervas”, “relva recém-cortada”, “hera”, “pimentos verdes”, “pimenta verde”, “pirazina” e outros relacionados com o mundo vegetal. Encontrei estes descritores em maior proporção por vinho provado, nas seguintes castas autóctones portuguesas brancas: Avesso, Bical, Fernão Pires, Gouveio (Godello), Loureiro, Rabo de Ovelha, Verdelho (da Madeira e Açores) e Vital. 


Equação a resolver na harmonização


Olhando para as opções de vinhos herbáceos que conversarão com o caráter verde das nossas favas-ricas, resta-nos agora resolver a seguinte equação: trazer elementos de frescura para contrastar com a tendência para o doce do recheio amiláceo dos grãos de fava, mas sem demasiada austeridade ou elementos de dureza que chocariam com o amargor das nossas leguminosas.


Na Revista de Vinhos de maio de 2019, quando tratamos das harmonizações com favas de modo geral, discorremos sobre a questão do amargo nos alimentos, um dos cinco sabores fundamentais, se incluirmos o umami oriental. Vimos que essa tendência amarga das favas concentra-se sobretudo no seu “fato” ou película externa, que não é retirado no preparo das favas-ricas. Como temos na nossa receita um agradável travo amargo, urge eleger vinhos que amorteçam essa sensação de dureza do prato com elementos de maciez da sua compleição estrutural: “doçura” alcoólica, untuosidade glicérica e riqueza de fruta. Essa é a mesma situação de outros alimentos com tendência para o amargor como a alcachofra, a chicória, radicchio, endívia, rúcula, fígado e o chocolate negro; ou de métodos de cozedura como na brasa com carvão e consequente carbonização da crosta; ou cozimentos muito longos com certas especiarias, que reforçam a tendência para o amargor. O efeito desta tendência, como vimos, é evidenciar sinergicamente todos os elementos de dureza do vinho candidato à harmonização. A acidez, a sapidez mineral e a adstringência dos seus taninos saltam do equilíbrio quando chocam com alimentos amargos. Nessa linha de raciocínio, evitemos a todo custo vinhos tintos e mesmo rosés, salvo os muito delicados, com as favas-ricas. A não ser que seja do gosto pessoal elevar à máxima potência toda a carga tânica e amarga do vinho tinto em questão, o que para a esmagadora maioria das pessoas não será.


Contudo, precisamos de um branco que, além de herbáceo no caráter e dotado de bons elementos de maciez para tamponar a tendência para o amargor das favas, traga também vivacidade para contrastar com a riqueza amilácea que emerge quando se rasga a camisa dos grãos, expondo um recheio deliciosamente amanteigado e algo adocicado na boca. Vinhos brancos, herbáceos, de uma alcoolicidade média-alta, com boa concentração de fruta e acidez igualmente média-alta, sublinhada por agradável sensação de sapidez mineral: esse é definitivamente o caminho.


Testes
Comprei as minhas favas frescas, cozinhei-as até começarem a desmanchar e deitei esse auspicioso granulado verde sobre dentes de alho que estavam a perfumar num tacho com bom azeite extra-virgem. Alguns salpicos de flor de sal e pimenta-preta moída e nada mais, as minhas favas-mais-que-ricas estavam prontas para serem calmamente provadas com dois vinhos de cariz herbáceo, ainda que um menos macio que outro, justamente para colocar em prática a teoria da harmonização atrás discutida.


Entre as castas herbáceas portuguesas, escolhi um Verdelho da Madeira da Diana Silva Wines, de 2018 (25,00€). Um branco vegetal, mineral e marinho, estridente na acidez, com apenas 11,5° de álcool e, por isso, bastante austero na prova. Delicioso como aperitivo, no confronto com as favas-ricas revelou ainda mais o seu nariz a lima verde e as “pontes aromáticas” herbáceas, da pimenta verde do vinho com a pimenta-preta das favas, uniram-se com perfeição. Todavia, na boca, a dinâmica não foi assim tão impecável. Se, no ataque, a acidez pontiaguda do vinho contrastou com a tendência para o doce das favas, no meio e fim-de-boca o amargor fez ressaltar toda a dureza e austeridade do vinho, que passou de equilibrado a magro, com uma acidez verde a tilintar nas sensações finais.


Desarrolhei também o clássico dos clássicos dos brancos herbáceos, um Sauvignon Blanc do Loire da sua denominação mais prestigiosa, Sancerre, de um excecional produtor biodinâmico, Vincent Pinard, o Florès 2018 (25,00€). O vinho apresentava um perfil menos vegetal, com grande qualidade de fruta, ainda que contida, e uma delicada chancela mineral calcária. 

É impressionante como os alimentos desnudam facetas nos vinhos. Com as favas-ricas, surgiram aromas mais herbáceos de pimentos verdes Capsicum, ainda que doces e maduros. Da mesma forma, a pimenta-preta ‘chamou’ notas mais fumadas de pederneira no vinho. Na boca obtemos uma harmonia incrível. A amplitude e generosidade de textura do vinho, talvez pelo facto de 2018 ter sido uma das melhores colheitas de Sancerre dos últimos 50 anos, não se deixaram abater pela tendência para o amargor das favas, a qual foi amortecida e carregada até o final de boca com muita harmonia, um “yin yang” de maciez e dureza. A frescura arrebatadora do Sancerre, por sua vez, deixou cada garfada nas favas melhor e mais estimulante - impossível parar de comer e beber. Esse é o maior “perigo” quando aprendemos e bem empregamos os métodos de harmonização vinho-alimento. São muitos e muitos anos de estudos e testes, mas vale a pena “esperar até vir a mulher da fava-rica”.