Harmonização: Ouriço-do-Mar e Vinho

O mar protegido por espinhos

Fotografia: Fabrice Demoulin
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Tal como as ostras, os ouriços-do-mar não são convidativos ao olhar pelo seu aspeto exterior, são complicados para abrir, desafiadores na sua textura, mas igualmente soberbos no sabor. E embora as ostras também sejam idiossincráticas do ponto de vista da apreciação gastronómica, os espinhentos companheiros das pedras são mais do que chamamos de um “gosto adquirido”. Afinal, só a ideia de comermos gónadas, os órgãos responsáveis pela produção de células sexuais, não é das mais atrativas. 
E são exatamente as gónadas produtoras de óvulos, no caso das fêmeas, e espermas nos machos, a parte comestível destes incríveis equinodermos. A maioria das espécies de ouriços oferece cinco “línguas” ou, mais poeticamente, “corais”, representando 20% do seu corpo, de gónadas voluptuosamente alaranjadas, com um aspecto de uma mousse rica e um assertivo gosto marinho, levemente salgado como maresia, ainda que intrigantemente adocicado ao mesmo tempo. A textura é amanteigada, cremosa, e o retropaladar é intenso, sabe a mar e persiste num registo de iodo e alga marinha, o principal alimento dos ouriços.


A coloração, o tamanho, o sabor e a textura das gónadas dependem muito mais da espécie dos ouriços, da sua alimentação e da época do ano da captura do que propriamente do facto de serem fêmeas ou machos. Das centenas de espécies que vivem em habitats preferencialmente rochosos, são poucas as que aparecem no mercado internacional de exportação, este plenamente dominado pela chilena Loxechinus albus e pelas diversas Strongylocentrotus ou ouriços vermelhos que vivem na costa do Japão, das Coreias, Rússia, Alasca e Estados Unidos em geral. O Paracentrotus lividus abunda na costa portuguesa e é quase todo exportado para Espanha. Por enquanto. Para a nossa sorte, esta espécie de ouriço possui gónadas de refinado sabor marinho e já pode ser apreciada nas marisqueiras da Ericeira ou nos cada vez mais numerosos restaurantes de topo de gama do sul ao norte do país, naqueles que sabem valorizar os nossos produtos endógenos. 
É mesmo certo que os ouriços-do-mar vivem um momento de crescente apreciação pelos gastrónomos de todos os continentes, ainda que a oferta mundial tenha reduzido dramaticamente, algo em torno de 35% nos últimos 20 anos. O consumo crescente, que põe pressão nos preços, foi certamente impulsionado pelos japoneses, que chegam a absorver quase 90% da produção mundial, e ensinaram através da sua culinária a paixão pelo uni, quando não é o caso de odiá-lo para sempre. O Chile é o maior produtor mundial de ouriços, com mais de 50% do total mundial, e há também naquele país uma cultura tradicional de consumo. Na Europa, Itália, França e Espanha lideram o mercado, e a ilha da Sardenha, curiosamente, possui o maior consumo per capta do planeta de ouriços-do-mar, quatro vezes o do Japão, mais de um quilo por pessoa ao ano.

Iodo, taninos, óleos de peixe e ferro

Em todas as principais escolas de harmonização vinho-alimento, a máxima “iodo choca com taninos” é dada como indisputável. Ou seja, os alimentos ricos em iodo não devem ser escoltados por vinhos que carregam mais polifenóis na sua composição, neste caso os vinhos tintos, com os seus dois gramas em média, contra os 30 miligramas em média dos vinhos brancos, por litro. A maior concentração natural de iodo está nos peixes e frutos-do-mar, e entre eles destacam-se o bacalhau, o carapau, o haddock, lagostas, lavagantes, camarões, percebes e a nossa vedeta, o ouriço-do-mar.

A química desta interação desastrosa ainda não foi plenamente explicada, mas o seu corolário é bastante óbvio e contundente: ambos os proponentes ao casamento ficam insuportavelmente metálicos no palato e depois no retropalato. Dessa forma, é totalmente desaconselhável escolhermos tintos tânicos, ou mesmo brancos fenólicos, com os ouriços. Um extensivo trabalho conduzido por pesquisadores japoneses da Mercian Corporation publicado em 2009 no Journal of Agricultural and Food Chemistry da Alemanha provou que outra interação, nunca antes tratada, também dificulta a harmonia entre tintos e peixes e frutos-do-mar, além do iodo com taninos: a do ferro nos vinhos com algumas gorduras insaturadas do alimento. Embora o conteúdo de gordura dos ouriços seja bastante baixa, algo em torno de 1,75 gramas de gordura poli-insaturada em 100 gramas, menos de metade do salmão, é bom levarmos em consideração que vinhos com teores mais relevantes de ferro tendem a ganhar e ressaltar aquele agradável “gosto de peixe em decomposição”. Estamos a falar em teores de ferro acima de 5 miligramas por litro. E que vinhos podem apresentar quantidades de ferro perigosas para quebrar as gorduras poli-insaturadas dos ouriços e libertar este travo repulsivo a peixe? Sobretudo os vinhos tintos. O ferro no vinho depende logicamente do solo, da casta e da vinificação, incluindo o estado das instalações e dos equipamentos que processam as uvas. Como os tintos estão mais em contacto com engaços, cascas e sementes e as uvas sofrem esmagamentos, macerações e prensagens mais agressivas, o teor de ferro pode subir para dezenas de mililitros e, nesse caso, já imaginamos o que acontece com estes vinhos pigmentados ao acompanhar o que vem do mar - e quanto mais gordo for, pior: sabem a peixe.

Acidez, sapidez mineral e pineno

A pedra basilar de uma harmonização com ouriços bem conseguida é a textura amanteigada das gónadas que reveste o palato e a sua tendência para o doce. Como já eliminamos os tintos da jogada, temos que nos basear em espumantes e brancos de excelente acidez, pois em contraposição à sensação percetível de doçura dos equinodermas, originamos um casamento dinâmico, estimulante e harmonioso. O gás carbónico dos espumantes também ajuda neste sentido, bem como a sapidez mineral de alguns brancos. Estes três elementos: acidez, gás carbônico e sapidez atuam de forma a limpar o palato do emplastramento causado pela textura amanteigada das gónadas. Vinhos brancos muito gordos e horizontais reforçariam ainda mais essa sensação de cremosidade e o casamento fica mais enfadonho. O ideal então é termos espumantes e brancos que assentam sobre a frescura da sua acidez e sapidez e que sejam verticais, ou seja, tensos no meio-de-boca e longos no fim-de-boca, para dialogarem com o persistente final iodado dos ouriços.
O pineno, por sua vez, é um monoterpeno que ocorre na natureza em diversas ervas (lavanda, menta, sálvia e tomilho), especiarias (zimbro, pistilos de açafrão e gengibre), solúveis no álcool e na gordura, mas não na água. Revela aromas de resina de pinheiro, abeto e zimbro. No ousado livro de harmonização molecular Taste Buds and Molecules, o autor François Chartier afirma que o pineno e, principalmente, o alfa-pineno, têm a “capacidade de sublimar o sabor do iodo” de uma forma positiva. Castas como a Riesling, a Alvarinho e a Loureiro, ricas em alfa-pineno, carregam com louvor os sabores marinhos iodados dos ouriços no seu persistente retro-olfato.


Nas minhas viagens pelo mundo do vinho, pude regozijar-me algumas vezes com os ouriços-do-mar no Chile, normalmente servidos com sumo de limão, cebola picada, salsa e coentros, os “erizos al matico”. Por regra, o maior produtor mundial de ouriços serve-os acompanhados de um fresquíssimo Sauvignon Blanc dos vales de Casablanca, San Antonio ou Leyda, com o seu lado herbáceo a dialogar com as ervas da receita, uma maravilha de harmonização regional. E que respeita as regras discutidas anteriormente: vinhos vibrantes na acidez, mais verticais e com alguma sapidez.


Em Itália, o “spaghetti ai ricci di mare” é uma “leccornia” tradicional das ilhas da Sardenha e da Sicília, uma maneira soberba e puríssima de apreciar a textura e o sabor marinho persistente dos ouriços, acrescentados crus aos esparguetes deitados no azeite aromatizado com alho, apenas na “mantecatura” final do prato. Servidos com os minerais Vermentino do norte calcário da Sardenha ou com os austeros Grillo da porção ocidental da Sicília, são sublimes. No entanto, provei uma vez estes esparguetes com um Zibbibo (ou Moscatel de Alexandria) de solo vulcânico da ilha da Pantelleria, do produtor De Bartoli, um branco salgado e ultra persistente, rico em pinenos, e o casamento resultou fabulosamente dramático.
Apaixonado pela (verdadeira) culinária japonesa, sempre que vou a um balcão de sushi peço algumas duplas de “uni” e deixo derreter no meu palato, com os olhos fechados. Sinto-me em frente ao mar a respirar fundo a maresia. E depois dou um gole no meu Riesling - alemão, austríaco, alsaciano ou australiano -, que fatalmente acompanha-me sempre nos melhores japoneses. A perfeição de arrancar suspiros.

Ouriçada na ‘Ouriceira’

Mas foi em Portugal que vivi as melhores experiências de vinhos e ouriços de sempre. Naquele vilarejo cujo nome diz tudo: terra de muito espinho no mar, a Ericeira. Entre outras experiências mais prosaicas, participei em dois almoços com amigos epicuristas e grandes conhecedores de vinhos, daqueles festins de entrar no rol dos mais pantagruélicos da vida. Num dos mais lindos e incríveis restaurantes de toda a região, o Sul do chef João Paulo Rodrigues, deliciamo-nos com pratos como “ovas de ouriço-do-mar com caviar de limão”, “ouriço-do-mar ao natural na sua carapaça”, “robalo laminado com leite de tigre e ouriços-do-mar”, um fabuloso “mergulho no mar aveludado de ouriços-do-mar, percebes e mexilhão” que ainda faz sonhar e acordar assustado à noite, “creme de ouriços-do-mar com gratinado de santola”, “risotto de ouriços-do-mar”, “creme brûlée com malagueta e cristais de ouriço-do-mar”, entre outros.

Nestas ocasiões provamos não somente os principais candidatos ao casamento dos sonhos com os Paracentrotus lividus da Ericeira, mas também alguns dos melhores espumantes e brancos do mundo, para citar apenas alguns: o grande espumante de Itália Giulio Ferrari do ano 2001, um Krug Grande Cuvée, champanhes de “petits vignerons” como Larmandier-Bernier e Benoît Lahaye, Riesling Grand Cru Sommerberg 2001 do Albert Boxler, Riesling Brauneberg Juffer Sonnenuhr Grosses Gewächs 2009 do Fritz Haag, dois nada gordos e muito precisos Chardonnays australianos, o Art Series 2010 da Leewin Estate de Margaret River e o Giaconda 2015 de Victoria, Chablis Grand Cru Valmur 2010 da La Maison Romanée, um mineral Maritávora Reserva 2008 e outros campeões do Douro como o Dona Berta Rabigato Garrafeira 2010 e o Lacrau Garrafeira Branco 2011, um espetacular Buçaco Branco Reservado 2001, maravilhas de França como um Meursault Coche-Dury 2005 e um Coulée de Serrant Savennières 1990 do mago Nicolas Joly, Vouvray Le Haut-Lieu Demi-Sec 1992, o Vinha Formal 2009 do Luís Pato, os Arintos impressionantes e calcários do Vale da Capucha, La Bota de Manzanilla Equipo Navazos e um Colares tinto 1950 do D.J. Silva de chorar lágrimas salgadas como ele.


Todos estes vinhos apresentaram muitos atributos para a “ouriçada” épica, embora, logicamente, alguns resultassem melhores com determinados pratos do que outros. Até o Colares tinto obteve imenso sucesso com o risotto de ouriço, mas só porque os seus taninos já estavam a polimerizar há 68 anos e o conteúdo de ferro do vinho deveria ser muito baixo. Por falar em Colares, um dos meus vinhos do coração, acho que o Colares branco reúne todos os apanágios necessários para o casamento perfeito com os ouriços: o alfa-pineno da Malvasia, a acidez pontiaguda, o salgado do mar, a verticalidade, o nível estrutural de sabor, o facto de nascer perto dos ouriços. Despedimo-nos sempre da Ericeira depois de um pôr-do-sol divinal da cor das gónadas dos ouriços e com a maresia a amalgamar-se com os aromas de tantos vinhos inesquecíveis.