Harmonização: Percebes, a essência do mar

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Para quem venera o mar e o que ele nos dá para comer, não há nada que se compare às percebes. Se um mergulho para lavar a alma no mar fresco e agitado de Portugal, num dia quente de verão, fosse transformado num sabor, seria o que este crustáceo de aparência instigante oferece. Prová-lo da forma mais imaculada possível, apenas cozido em água salgada, com um vinho diáfano nos seus aromas e sabores, é uma experiência poseidónica, multimodal. Para escolher a garrafa perfeita temos, contudo, que ir de encontro aos solos marinhos e à translucidez dos sabores e textura. 

 

Sempre que recebo em Lisboa amigos conterrâneos do Brasil, é com imenso prazer e quase uma obrigação, que me imponho levá-los a comer peixes e frutos-do-mar neste paraíso para os entusiastas dos sabores oceânicos chamado Portugal. O gosto e a textura dos peixes das frias águas que banham a nossa costa é absurdamente diferenciado e a forma de preparo muito transparente, apenas grelhado no carvão, catapulta estes puros sabores a algas, crustáceos, ondas e iodo para uma nova dimensão sensorial.


No entanto, encanta-me e diverte-me muito quando consigo dar a provar a estes amigos um crustáceo de aspecto encantador para alguns, repulsivo para outros, associado normalmente a um “animal pré-histórico”, ou a uma “pata de elefante”, ou ainda a um “pé-de-porco preto”: as espetaculares percebes.


Gosto de vê-los rasgar o pedúnculo abaixo do capítulo ou unha do animal. E, mesmo com os meus avisos prévios, quando sentem as inevitáveis esguichadelas que saem para todos os lados, como quando nos sentamos numa rocha do mar e sentimos a sua força viva na rebentação. E, por fim, fascina-me observar atentamente a reação dos meus amigos ao colocar pela primeira vez na boca os músculos que recheiam o pedúnculo, bem como os comentários que vêm a seguir: “puro gosto de mar”, “do mar frio e agitado”, “sabor de onda do mar”, “mergulhar de boca aberta na onda”, “a essência do mar”, “nem as ostras são assim tão puras na expressão do mar”. 


Com o nome oficial de Pollicipes pollicipes, as percebes vivem na costa ocidental atlântica do paralelo 15° N, acima de Dakar, no Senegal, até ligeiramente ao norte da Bela Ilha no litoral da Bretanha em França, no paralelo 48° N. Quase inexiste no Mediterrâneo, com algumas ocorrências na costa marroquina. Contudo, é na costa portuguesa e espanhola que proliferam estes crustáceos únicos, para alegria, e também preocupação com a crescente exploração, dos gastrónomos ibéricos. Assim que os ovos das percebes eclodem, as larvas libertadas em forma de náuplios, como muitos outros crustáceos, nadam livremente durante aproximadamente um mês, até se fixarem num substrato rochoso, no qual assumirão a forma séssil típica que conhecemos à mesa. E os pequenos náuplios preferem locais de elevado hidrodinamismo, com superfícies rochosas de declive acentuado, frestas ou grutas, pois as ondas trazem grande oxigenação, necessária para quem vive cimentado às pedras.


Onde as percebes crescem, ficam deliciosas e irresistíveis, são justamente nos sítios que impõem grandes desafios aos seus apanhadores, ou percebeiros, facto que explica o alto custo destes preciosos crustáceos. Vidas são perdidas anualmente nessa apanha em rochas açoitadas pelas marés. Um risco grande que gerações de apanhadores incorrem para satisfazer paladares de epicuristas locais e estrangeiros à procura da mais pura essência do mar. Há que se pagar e valorizar muito as percebes.

Um preparo cristalino

Outro aspecto fascinante das percebes é que nenhum grande cozinheiro do mundo, pelo menos que eu tenha notícia, dá-se ao trabalho de tentar melhorar o que a natureza já assim forjou, uma verdadeira perfeição. Mesmo as ostras, que para mim já são absolutamente divinais da forma em que saem vivas do mar, surpreenderam-me em preparos incríveis deliciados nas minhas viagens de pesquisa como sommelier, em França e em outros países, como em gelatina translúcida de pepino, algas e água do mar servida fria; ou morna sobre uma julienne de legumes napeada com “beurre blanc” aromatizada com zestes de laranjas e trufas frescas.


As nossas percebes, todavia, agradecem a sensibilidade e respeito de quem as prepara com apenas um banho em água salgada na proporção de sal do mar, ou melhor se na própria água do mar. São apenas dois minutinhos de cozedura após a água levantar fervura, nada mais, nada menos. Em respeito a Neptuno ou Poseidon, evite colocar folhas de louro, limão ou qualquer outra distração aos sabores essenciais marinhos, para evitar a ira dos deuses.

Características para harmonização

Vamos então à análise técnica das características gusto-olfativas e de textura das percebes para a escolha dos vinhos quee dignifiquem esta preciosidade dos mares e que valorizem a sua raridade mundial, bem como o sacrifício em apanhá-las. Um vinho branco escolhido sem nenhum critério pode simplesmente arruinar essa que é uma das melhores experiências gastronómicas do mundo.


Primeiramente, do ponto de vista aromático, estes crustáceos emanam num nível moderado uma inebriante brisa marinha, com aromas de ondas a arrebentar nas pedras, algas, crustáceos e iodo. Não são bem-vindos aqui vinhos com fruta muito exuberante ou com aportes especiados de madeira; temos sim que procurar um perfil mais contido, mais mineral e salino, vinhos “terroir-driven” que evoquem solos calcários, que já foram fundos de oceanos, ou talvez solos vulcânicos extrusivos que impactam nos vinhos com uma chancela mais fumada, de pedra-pomes, ou solos graníticos intrusivos com a frescura e tensão salina que aportam aos vinhos. Vinhos mais “savoury” como os Arintos e Verdelhos (ver testes) do que aromáticos e frutados, quando pensamos nas castas portuguesas.


Embora as percebes possuam uma tendência para o doce que é bem perceptível com a mastigação dos músculos, a ínfima composição lipídica da carne, por volta de 1%, exclui a escolha de vinhos muito ácidos, ou efervescentes, ou muito sápidos. Estes três pilares de “dureza” dos vinhos precisam de encontrar no alimento algum conforto para amortecê-los, a saber: a sua tendência para o doce e a presença de gordura sólida, nada que as percebas possam oferecer.


Outra característica importante para fins de harmonização é a sensação táctil de suculência das percebes. Uma prerrogativa dos melhores exemplares, quando muito frescos e cozidos no ponto certo, é a presença interna de sucos, que adoram esguichar nos comensais, de forma a tornar ainda mais verdadeira a experiência marinha. E há também a suculência induzida na cavidade bucal ao mastigarmos as percebes. Os sommeliers empregam dois elementos dos vinhos para enxugar a suculência dos pratos: o álcool ou os taninos. A nossa escolha recairá sobre o álcool do vinho, neste caso. Vinhos com acidez moderada e 12,5º de álcool, ou vinhos um pouco mais ácidos e 13,5°, enxugam bem a suculência das percebas. Lembremos que a acidez age no sentido contrário do álcool, fomentando salivação e mais suculência na boca.


Finalmente, temos que ter muita atenção à presença significativa de iodo e, a um nível médio, de umami nas percebas. Ainda que não tenhamos tanto iodo como nas ostras, bacalhau ou sardinhas, todos estes acima de 100 μg de iodo em 100 g de carne, as percebes, com os seus cerca de 60 μg já inviabilizam a escolha de tintos, uma boa parte dos rosés mais estruturados e mesmo brancos com taninos elágicos da madeira ou curtimenta. Taninos e iodo são tempestade no mar e o resultado é um naufrágio de retro-palato metálico. A composição proteica de aproximadamente 20% na carne das percebes garante uma rica presença do “quinto sabor umami” através dos aminoácidos glutamato e inosinato. E, mesmo com uma cozedura rápida, estes aminoácidos são libertados com a quebra das proteínas. O umami no alimento realça todos os elementos de dureza do vinho - taninos, ácidos e sais minerais - e restringe a sua maciez frutada. Temos todos os elementos para partir, vamos navegar então aos testes?

Testes
Selecionei  oito vinhos brancos, mais minerais, puros e contidos do que direcionados para a fruta, sem madeira ou com “madeira invisível”, para testar com as percebas espetaculares selecionadas pelo exigente Sérgio Rodrigues do restaurante Sem Dúvida, de Lisboa. Gigantescas, suculentas e intensas na expressão marinha, cozidas à perfeição, pude deliciar-me com calma, uma a uma, perante vários vinhos, e escolher aqueles que enalteciam e carregavam os seus sabores até um longo final de boca, sem sobrar o sal do mar, o álcool ou os elementos de dureza dos vinhos pretendentes ao conúbio perfeito.


VINHOS VULCÂNICOS DE ROCHAS EXTRUSIVAS

1. FERNÃO PIRES E VERDELHO, 2018, AÇORES
Este belo branco da ilha de São Miguel impressionou-me pela sua pureza e carácter vulcânico numa prova anterior, mas com as percebas a fruta da Fernão Pires saiu do equilíbrio e não acompanhou os aromas do mar até ao final. O iodo ainda fez nascer uma impressão metálica no retro-palato e o umami ressaltou a textura “pedregosa” dos vinhos vulcânicos extrusivos na boca. Moderadamente harmónica.

2. VERDELHO COM UM TOQUE DE SERCIAL, 2017, MADEIRA
Um grande branco madeirense com um sopro de carvalho que, ao confrontar com o iodo do crustáceo, deixou de ser invisível e deu uma ligeira nota metálixa no final. Mas o perfil mineral fumado do vinho ficou realmente incrível com os aromas oceânicos, a imagem do mar a açoitar as pedras negras vulcânicas vinha precisa e intensa com cada gole. Harmónica.

3. ARINTO, 2017, AÇORES
Outro dos meus vinhos insulares preferidos, mas que teve o seu lado da dureza, mormente a sua sapidez vulcânica, a “saltar” fora do equilíbrio. O perfil mais “savoury” do Arinto açoriano do Pico resultou muito melhor do que o Fernão Pires de São Miguel provado antes, mas a textura do vinho ficou igualmente “pedregosa” e o final até um pouco amargo pela presença do iodo e o realce dos elementos de dureza pelo umami. Moderadamente harmónica.

VINHOS DE GRANITO

4. LOUREIRO, 2017, MINHO
Escolhi este Loureiro por ser muito “frio” na fruta, bastante mineral e contido, nascido com leveduras selvagens, que geram um perfil mais “savoury” do que de ésteres de frutas. Mesmo assim, parecia-me que sobrava um pouco de fruta na harmonização. Mas curiosamente, ao contrário dos vinhos de rocha extrusiva, este Loureiro manteve-se íntegro na textura e carregou bem os sabores das percebes até ao final. Talvez o álcool baixo de 11,5º não tenha enxugado a suculência na boca, e a sua alta acidez ainda tenha contribuído para mais salivação e suculência, mas o resultado final foi satisfatório. Moderadamente harmónica.

5. ALVARINHO NA ÂNFORA, 2018, MINHO
A minha intensão era colocar um Alvarinho extremamente puro e preciso, sem excessos frutados ou florais, e um pouco mais “savoury” como este impressionante exemplar fermentado em ânforas. Na Galiza é muito comum beber os Albariños da Rías Baixas com as suas percebes. A harmonia foi aguda, o vinho encaixou-se nos sabores marinhos, sem perder a sua preciosa pureza. O teor alcoólico de 13,5° enxugou bem a suculência e a fina textura granítica permaneceu intacta até o final. Harmónica. 

VINHOS DE CALCÁRIO

6. ARINTO, 2017, LISBOA
Um grandioso Arinto de Lisboa, pura pedra calcária no nariz e na boca, que fomentou uma harmonização nas alturas com as percebes, ainda que estivesse um bocadinho acima na parte aromática em relação ao crustáceo. Enxugou bem a suculência com 12,5º de álcool e manteve a sua textura fina e tensa de calcário até no final. Harmónica.

7. CHABLIS 1er CRU, 2016, FRANÇA
Outra proposta harmónica, deliciosa. Talvez um Chablis da categoria Villages, abaixo do 1er Cru, fosse suficiente em termos aromáticos e estruturais. Como este produtor não usa nunca madeira na sua adega, o vinho teve a sua mineralidade calcária enaltecida, sem metalizações. A textura pura do antigo solo marinho conversou com o mar fresco das percebas num diálogo atemporal. Harmónica.

8. GRAUER BURGUNDER BIODINÂMICO, 2017, ALEMANHA
A melhor harmonização com as percebas foi por mero acaso. Tal como uma tormenta inesperada leva um barco para uma ilha paradisíaca nos romances literários. A minha ideia original era levar um Riesling dos solos calcários do Rheinhessen para a prova, mas inadvertidamente peguei numa garrafa, do mesmo produtor, de Grauer Burgunder - ou Pinot Grigio, ou ainda Pinot Gris. Com fruta mais tímida que o Riesling, mostrava bem a sua origem calcária no nariz. Menos ácido e mineral que o planejado Riesling, amorteceu na perfeição o assalto salino e iodado das percebas e o seu teor alcoólico de 12,5º enxugou na medida certa a suculência natural e induzida do crustáceo. O diálogo entre os dois perdurou no longo final marinho e iodado, sem nenhum sinal de metalização ou recrudescimento dos elementos de dureza do vinho. Haverá a cada dia uma surpresa a comover-nos no mar, no vinho e na vida. Harmónica.