Harmonização: Vinho e favas

Fotografia: Daniel Luciano
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Desde há 6 mil anos que as favas alimentam e encantam, nutritivas e saborosas como são. Os romanos antigos levavam a Vicia faba a sério e os romanos modernos não abdicam, à chegada da primavera, de beber uns bons goles do seu Frascati com favas, salames locais e um contrastante queijo Pecorino. Contudo, são os portugueses os imbatíveis mestres na execução culinária. Que vinhos harmonizar com este prenúncio de primavera?

 

Favas no mundo

O facto de as favas serem das únicas espécies das Fabaceae - leguminosas que compreendem as vagens, ervilhas e feijões - que não têm origem na América do Sul ou Central, permitiu que percorressem o mundo desde a sua origem, na bacia do Mediterrâneo, estabelecendo-se como base alimentar da Europa à Ásia e depois nas Américas. O receituário é global e gigantesco e, como parte daqueles que veneram as favas, faço questão de provar as diversas interpretações que encontro por todo o lado. Riquíssimas em sabor e algo amargas, as nossas leguminosas entram na categoria dos alimentos idiossincráticos, que geram amor ou ódio.


O maior produtor mundial de fava é a China e, na chegada da primavera, aparecem nas ementas inúmeras receitas regionais. Certa vez em Londres comi favas refogadas com bacon chinês e pimentas de Sichuan, perfumadas com um toque de vinho de arroz, molho de soja e gergelim torrado. Um belo Riesling Spätlese do Mosel fez as honras com louvor e creio até que converteria alguns detratores das favas para o lado dos entusiastas inveterados. 
Nascido no Egito, que por sinal é um dos 10 maiores produtores de fava, espraiado por todo o Levante e atualmente pelo mundo, o falafel é um bolinho de fava que também pode levar grão-de-bico, perfumado com temperos mouriscos. Servido com humus de grãos, o falafel pede vinhos rosés que tragam frescura para contrastar com a fritura, bem como a fruta ensolarada que confere maciez gustativa para amortecer arestas de amargor das favas e do tahini de gergelim, ingrediente fundamental do humus. Um rosé do alto vale do Bekaa, sempre rico e fresco, é a minha escolha técnica, com sotaque do Médio Oriente.


As favas estão também na mesa mexicana, em sopas ou no recheio de tlacoyos; nestes casos, um Fumé Blanc ou um White Zinfandel do Valle de Guadalupe na Baja California são ótimas escolhas para uma harmonia regional. 
Se há país na Europa que pode competir com Portugal na tradição e paixão pelas favas é a Itália. Por ser um prenúncio da primavera e um dos primeiros vegetais a serem colhidos após o inverno, as favas são associadas, na velha península, às refeições alegres “fuori porta” e, em diversas regiões, ainda é tradição comer os primeiros rebentos de fava crus, doces e suculentos, a contrastar com o salgado e especiado dos salames e do queijo Pecorino. Essa harmonização da fava com o Pecorino é realmente divinal, assim como quando confrontada com os outros “sais” do mundo, incluindo as anchovas e a pancetta. Assim tão tenras e precoces, as favas acompanham muito bem os brancos mediterrânicos de Itália, como os Vermentinos da Ligúria e Toscana, ou o Verdicchio das Marcas. Sem esquecer o romaníssimo Frascati, desde que seja dos produtores sérios, não o industrial e ralo elaborado para matar a sede dos milhares de turistas que invadem a “cidade eterna”. 
Do outro lado do Adriático, as favas também encontram espaço nas “mezes” e pratos gregos. Refogadas em bom azeite, perfumadas com hortelã fresca e adornadas com um contrastante queijo salgado, o nacional feta ou o cipriota halloumi, concorrem para uma efusiva salada primaveril. Não seria nenhuma tragédia grega acompanhá-la com um Malagousiá, casta que propicia, quer na Grécia central como no Peloponeso, um branco mais frutado e herbal do que os espetaculares, mas muito minerais e cortantes, Assyrticos de Santorini.

Favas em Portugal

Como apaixonado por favas e sommelier itinerante, confesso que não conheço país no mundo que revele um rol tão vasto e arrebatador de receitas com estas leguminosas como Portugal. Das inúmeras versões de saladas com favas, muitas delas com coentros, dos cremes, sopas e esparregados, acompanhando diversos pescados e inclusive o bacalhau, guisadas com tantas partes do porco, com caças, enchidos e ovos escalfados, ou no arroz, há favas para todos os gostos e vinhos possíveis. 
Para este artigo resolvi levar em conta as duas formas mais tradicionais de apreciar as favas: muito precoces, semi-maduras, consumidas cruas apenas com flor de sal, azeite ou manteiga; ou então mais maduras, num fumegante guisado com toucinho, chouriço, morcela e entrecosto, vinho branco, cebola, alho e coentros.


Uma das razões pelas quais as favas constituíram-se como esteio alimentar de diversos povos antigos é o seu altíssimo valor nutritivo, que alegadamente não era à época conhecido em termos químicos e quantitativos, mas pela sensação de fastio que proporcionavam. O riquíssimo conteúdo de proteínas, fibras, vitaminas e amido mata a fome do corpo e da alma. E o baixíssimo conteúdo de lipídios faz das favas um alimento de grande valor, sem falar ainda no seu sabor!
Quando adicionamos uma camada hedonista às favas, o que era bom fica excecional. A película externa envolve um recheio com intenso sabor verde, de natureza, florestal, herbal, de clorofila, terroso e ao mesmo tempo adocicado, amiláceo, amanteigado, amendoado. Um travo amargo delicioso e característico surge no meio-de-boca e prolonga-se nas sensações finais. A maior parte deste amargor está no “fato” dos grãos de fava. E a decisão de descascá-las influencia totalmente o resultado final da harmonização.

Tendência no amargor

O amargo é um dos cinco sabores fundamentais, se incluirmos o umami do Oriente. Nascemos a gostar apenas do doce, que sinaliza calorias, e do umami, que sinaliza proteínas e, consequentemente, energia e crescimento. Aprendemos a gostar do sal, do ácido e finalmente do amargo, este último a marcar alimentos não maduros ou mesmo tóxicos, com o passar do tempo. Segundo o livro de Jamie Goode “I Taste Red, The Science of Tasting Wine”, ao contrário do que era divulgado até hoje, o amargo é captado pelos nossos recetores de sabor, os botões gustativos, espalhados por toda a língua e palato, e não apenas nas papilas circunvaladas concentradas na base posterior da língua. 
Ingredientes ou receitas com um ligeiro toque amargo, ou tendência ao amargor, podem perfeitamente gerar excelentes harmonizações com vinhos caracterizados por um equilíbrio pendente para a balança da maciez, em detrimento da dureza. Isto porque a tendência para o amargor, tal como a tendência ácida ou a sapidez, são elementos de dureza nos alimentos, que devem contrapor-se, ou serem bloqueados, por elementos de maciez nos vinhos, a saber: a riqueza de fruta, álcool, glicerina ou açúcares residuais, quando este for o caso.


A tendência para o amargor é carregada ou reforçada por ingredientes como as favas, sobretudo se não forem descascadas, bem como a alcachofra, chicória, radicchio, endívia, rúcula, fígado e chocolate negro; ou métodos de cozedura com brasa com carvão e uma consequente carbonização da crosta; ou cozimentos muito longos com determinadas especiarias. O efeito desta tendência é evidenciar sinergicamente todos os elementos de dureza do vinho candidato à harmonização. A acidez, a sapidez mineral e a adstringência dos taninos tendem a sair do equilíbrio quando chocam com alimentos amargos. Se os vinhos trouxerem algum amargor além da adstringência é desastre enogastronómico garantido. 
Em resumo, após respeitar a primeira regra de harmonização, ou seja, regular o nível de estrutura do vinho com o nível de estrutura do prato, temos que encontrar vinhos que respeitem o delicioso, mas sempre presente, travo amargo das favas. Vinhos que aportem maciez de fruta e álcool e sem arestas de dureza ou taninos e ácidos protuberantes.

O coentro amigo

Tal como as favas, o coentro caracteriza-se pelos seus aromas frescos e florestais de terra molhada. Outros apontamentos refrescantes, anisados, de mentol e casca de cítricos, casam divinalmente com as favas: parece que os aromas de um continuam no outro. Não estranhamente, o coentro é um fiel escudeiro das favas em diversas receitas em Portugal e no mundo. 
Do ponto de vista aromático, há uma série de castas portuguesas e estrangeiras que carregam estes compostos voláteis anisados/mentolados: anetol, mentol, estragol ou eugenol podem gerar bons namoros ou casamentos. A Alvarinho, a Arinto, a Sauvignon Blanc, a Verdejo são algumas das brancas, e o Rufete, a Trincadeira, a Syrah, a Grenache algumas das tintas a ter em mente.

 

Testes

Numa semana de testes, provei algumas dezenas de vinhos com as favas cruas ao natural e com as favas guisadas à portuguesa. Além de ter certeza absoluta que não sofro de favismo, pude regozijar-me com estas leguminosas sensacionais e afinar a minha opinião técnica sobre os vinhos que mais bem casam.


A primeira regra da harmonização, que é a calibragem de estrutura para que vinho e alimento tenham o mesmo volume, peso e carga aromática, garantiu que, para as favas cruas, vinhos brancos e rosés funcionam muito bem. Menor peso na mesa, menor peso no copo. Muito importante, como discutimos anteriormente, é trazer vinhos que tragam equilíbrio para o lado de maciez da fruta, consequência usual de climas menos frios, para amortecermos a tendência para o amargor das favas. Prefira então um Alvarinho mais maduro e untuoso do que um muito mineral e tenso. Ou um Loureiro de vinhas velhas, mais rico e perfumado, do que um muito jovem, afiado e nervoso. Brancos e rosés do Mediterrâneo, mais macios e ensolarados, irão casar maravilhosamente bem com as favas cruas e com a chegada das estações mais quentes e luminosas.


Com as favas guisadas à portuguesa, todavia, o aporte de estrutura dado ao prato pelo toucinho, enchidos e entrecosto, além dos condimentos, obriga-nos a colocar mais peso do lado do vinho na balança da estrutura. Brancos muito ricos, rosés de carácter e tintos passam a ser as escolhas corretas para este clássico fabuloso da cozinha portuguesa. Sempre com a condicionante da maciez acima da dureza na balança do equilíbrio do vinho nubente. 
Os tintos muito estruturados e tânicos que provei fracassaram no confronto com as favas: um grande Bairrada com os taninos firmes da Baga teve todo o seu lado da dureza fortemente evidenciado pelo amargor das favas, ficando demasiado duro e intransigente. Um grande alentejano que era equilibradíssimo antes de ir para a mesa tornou-se taciturno, prejudicando a sua riqueza de fruta e a sua tipicidade.


Sagraram-se campeões um tinto muito fresco de Rufete da Beira Interior, um alentejano de altitude com base na Trincadeira e um Barbera com taninos muito resolvidos e marcada frescura do Piemonte. Todos estes vinhos de estrutura condizente com o prato, taninos subtis e pouco adstringentes que não saíram do equilíbrio no confronto com o amargo e, finalmente, frescura agradável a contrapor à doçura amilácea das favas e à gordura sólida dos enchidos de porco. Faça os testes enogastronómicos como este sommelier, pois “favas me fartam, favas me matam de prazer”, quando o assunto é harmonizar vinho-alimento.