Harmonização: Vinho e Pão de Ló de Ovar

Fotografia: Daniel Luciano
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Há receitas em que o visual não antecipa a magnitude dos sabores que encontraremos à primeira garfada. E depois há assombros, como o Pão-de-Ló de Ovar, transbordante na untuosidade dourada, resguardada por uma singela côdea acastanhada. Rendidos já pelos olhos, o melhor é entregarmo-nos completamente a esta maravilhosa sublimação dos ovos. E a escolha dos vinhos adequados para a harmonização é fundamental para enaltecer este pão com merecida Indicação Geográfica Protegida.

 

 

Poderia ser um pão-de-ló como os outros, elaborado apenas com ovos, açúcar e farinha. Mas é único na apresentação, na riqueza da sua textura, na intensidade da experiência como um todo. São os ovos à máxima potência. O que poderia ser mais adequado para discutir a interação entre ovos e vinho do que esta preciosidade de Ovar?

Ovos e vinho

Entre os ingredientes ardilosos para harmonização, como as alcachofras, espargos, alho cru, frutas frescas, vinagre e picles, os ovos são dos mais polémicos candidatos a um bom vinho. Não fora apenas a dificuldade de limpar o palato e casar os seus sabores e textura na boca, os copos utilizados na prova ficam irremediavelmente a cheirar ovo, o que atrapalha, ou mesmo anula, a possibilidade de sentir os aromas do vinho depois do primeiro gole, principalmente se for um vinho mais delicado. Essa foi uma das razões pelas quais sugeri fortemente abolir os ovos do nosso ‘wine bar’ Wines by Heart em Lisboa, para tristeza do chefe de cozinha.


Uma destas dificuldades em harmonizar vinho e ovos surge da forma como revestem o nosso palato, quase sufocando as papilas gustativas. Do ponto de vista aromático, possuem mais de 100 compostos voláteis, mormente sulfúreos e aldeídos. Quando usados em diversas receitas salgadas ou doces, os ovos tentem a carregar os outros sabores, através da sua riqueza lipídica, do que a assumir qualquer protagonismo. Por isso é quase insubstituível para conferir “mouthfeel” e textura a molhos, cremes e pastelaria em geral.
Mas quando os ovos são solistas ou protagonistas de relevo da receita, o “cheiro a ovo” que aparece nos copos também está no prato e no aroma-de-boca e pode trazer riscos à harmonização: é melhor guardar grandes garrafas para outras ocasiões. Temos um ótimo exemplo quando chega a temporada de trufas frescas nos melhores restaurantes do mundo. Abrimos os Barolos e Borgonhas de alta estirpe com o risotto ou a massa “tagliolini” generosamente cobertos com lâminas de trufas mas, para o ovo estrelado “al tartufo”, um clássico fabuloso que carrega como nenhum outro os sabores dos nobres fungos subterrâneos, desarrolhamos um branco sem madeira com alguma idade ou um tinto terroso menos importante e caro, ao invés de um grande Barolo. E trocamos os copos depois!


Importantíssimo também, ainda mais no contexto da harmonização com o Pão-de-Ló de Ovar é, na escolha do vinho que seja eficaz neste confronto, diferenciar o efeito da gordura sólida para a gordura líquida. Vamos lembrar que um ovo de aproximadamente 50 gr. possui 5 gr. de gorduras totais, a quase totalidade na sua gema. A parte proteica, todavia, concentra-se na clara, com aproximadamente 3,6 gr. contra 2,5 gr. da gema. As proteínas da gema coagulam por volta dos 68ºC e as da clara, devido às composições diferentes, a 60ºC. Mas se outros ingredientes são adicionados aos ovos, estas temperaturas alterar-se-ão para cima - no caso de adição de leite, água, farinha - ou para baixo - na adição de ácidos ou sais que contrapõem à carga negativa das proteínas. 
É muito comum encontrarmos na (pouca) literatura disponível sobre harmonização que “acidez limpa gordura”. Mas poucas vezes é discutida a fulcral diferenciação entre gordura sólida e gordura líquida, esta última também denominada untuosidade. Conforme discuti nesta revista quando abordamos o tema “azeite”, é extremamente importante a distinção entre o efeito dos óleos ou gorduras líquidos na cavidade bucal, que provocam uma sensação tátil escorregadia de untuosidade, do efeito de emplastramento ou pastosidade das gorduras sólidas. Se a gordura é líquida, como no azeite, temos que procurar no vinho elementos que lavem ou minimizem os efeitos desta untuosidade na boca: a saber, o álcool ou os taninos. Se a gordura é sólida, como de um ovo cozido, da manteiga fria, de um sashimi toro ou de um enchido de porco, cuja sensação tátil é de emplastramento ou pastosidade, então um dos elementos para estimular a salivação e a consequente emulsão e limpeza da gordura é a acidez dos vinhos. E ela pode ser coadjuvada pela sapidez mineral e pela presença de gás carbónico, os quais atuam sinergicamente neste sentido de detergir o emplastro de gordura sólida.


No caso particular dos ovos, podemos ter ovos cozidos acima da temperatura de coagulação das suas proteínas, pelo que a gordura apresentar-se-á no estado sólido e a textura do ovo será mais “farinhenta”, merecedora de uma boa carga de acidez e talvez até gás carbónico, para limpar o palato. Não é então por acaso que Champanhe resulta bem com ovos cozidos, e melhor ainda com uma colherzinha de ovas de salmão ou caviar em cima. Da mesma forma, nos pães-de-ló “secos”, em que a rede de proteínas dos ovos está plenamente coagulada, agradece-se vinhos com um agradável toque de acidez, como num Asti Spumante ou um Porto branco com mais frescura e sapidez.


Já no caso dos ovos de gema mole, em pratos como os típicos ovos com farinheiras das tascas portuguesas ou dos “œufs en meurette” pochés em vinho tinto e “lardons” à moda da Borgonha, o caminho é procurar no álcool do vinho, no primeiro caso, ou nos seus taninos, no segundo, forma de limpar esta untuosidade que revestirá inexoravelmente o nosso palato. Os sommeliers pelo mundo reconhecem o desafio que os ovos moles representam, mas quando no campo de batalha, gostam muito de indicar para os “runny eggs” vinhos brancos mais alcoólicos do que ácidos, mas sempre sem madeira: ‘unoaked’ Chardonnay, Pinot Blanc, Pinot Gris, Viognier, e outros brancos de regiões mais quentes. Confrontar a gordura em forma de untuosidade com o álcool traz menos infortúnios do que com os taninos, salvo em alguns clássicos específicos como o “meurette” com tintos de entrada de gama da Borgonha, tipo um Bourgogne Passetoutgrains AOC. É bom lembrar o choque provocado pela adição de claras (carga proteica) aos vinhos no processo de colagem para floculação de taninos e clarificação, ainda na fase do seu estágio na adega.

Pão-de-Ló de Ovar: características para harmonização

Entre os diversos pães-de-ló que provei em Portugal, o de Ovar foi o mais voluptuoso em todos os sentidos. A sua apresentação convidativa dentro do papel almaço dobrado em flor de quatro pétalas, com uma côdea fina do dourado ao acastanhado que esconde um recheio rico em ovos, muito húmido e cremoso, denominado localmente de “pito”; a proporção aproximada de oito ovos (dois inteiros e seis gemas) para 125 gr. de açúcar e 70 gr de farinha garante que o ovo seja o protagonista da estória. 
Todo o diferencial desta maravilha culinária portuguesa que remonta a finais do século XVIII, à base de ingredientes comuns a diversos outros doces e pães semelhantes, reside na técnica engenhosa que os pasteleiros vareiros aperfeiçoaram ao longo destas centenas de anos. Basicamente, quer-se uma côdea e laterais lindamente assadas a reter um interior que não é cru, mas que foi assado abaixo da temperatura de coagulação das proteínas do ovo, tal como na técnica do “ovo perfeito”.


O resultado, para fins de harmonização, é que o Pão-de-Ló de Ovar apresenta uma textura que reveste o palato, sob a forma de um creme adocicado e levemente espumoso de gemas. Gordura líquida ou untuosidade na sua melhor definição. Conforme vimos, precisamos nestas situações de vinhos alcoólicos - taninos aqui são dispensáveis - para limparmos com eficácia estas sensações táteis escorregadias. O principal produto da fermentação dos açúcares do mosto, o etanol, possui uma parte apolar na sua cadeia molecular, tal como as gorduras, que nela são solúveis e, por isso, passíveis de serem limpas. Nos vinhos fortificados como o Vinho do Porto, Vinho Madeira, Moscatel de Setúbal ou Carcavelos, o volume alcoólico majorado pela adição de aguardente vínica é uma arma dos sommeliers para situações extremas de untuosidade voluptuosa, como é o caso do Pão-de-Ló de Ovar.


Por fim, temos ainda que equiparar o nível de doçura do nosso pão-de-ló ao do vinho, a primeira regra de harmonização com algum alimento/receita doce. Embora a quantidade de açúcar seja próxima do Pão-de-Ló de Margaride, abordado na Revista de Vinhos de Abril de 2019, a sua textura e humidade dão uma sensação gustativa de doçura muito mais perceptível que neste pão-de-ló “seco”. Aqui não há espaço para vinhos secos em contraposição a uma tendência ao doce, precisamos de calibrar a doçura do vinho a harmonizar no mesmo nível de riqueza do pão vareiro. Também devido à textura rica e untuosa, que recobre o palato e prolonga as sensações finais gusto-olfativas, a persistência do vinho deve ser longa.

Na prática

Quando provei vários fortificados portugueses com o Pão-de-Ló de Margaride e elegi um Porto Branco de estilo menos oxidativo como o campeão da harmonização, também eliminei todos os outros vinhos mais assertivos como candidatos ao conúbio com aquele pão quase etéreo na sua fina renda de sabores. Portos das famílias Tawny ou Ruby, Carcavelos, Madeira, tudo com carácter vincado, passaram por cima da versão aérea e delicada de Margaride. Embora a gordura sólida dos ovos no pão-de-ló “seco” agradecesse alguma presença de acidez e sapidez nos vinhos.


No impetuoso Pão-de-Ló de Ovar, estes portentosos fortificados fazem todo o sentido, pois necessitamos, pelos cânones da harmonização, de concordar o nível de estrutura e persistência aromática dos pratos com o dos vinhos. Na versão de Ovar também se percebe mais a doçura, o que é ótimo para a maioria dos fortificados. O ponto mais importante para focarmos, todavia, é que temos untuosidade ou gordura líquida, ao invés de emplastro de gordura sólida para ser limpa pela alcoolicidade dos vinhos. Esta untuosidade também pode ser limpa por taninos em outros contextos, como discutimos acima, mas não quando deriva de puro ovo não coagulado. Evitemos assim os Portos estruturados da família Ruby: Late Bottled Vintage, Crusted ou Vintage.


Desta forma, os meus vinhos preferidos para o Pão-de-Ló de Ovar têm sido os Portos Tawnies com indicação de idade 10 ou 20 anos, os Carcavelos com alguma idade, Madeiras meio-doces a doces como o Boal ou Malvasia, preferencialmente acima dos 10 anos, e Moscatéis de Setúbal com alguma idade. Temos a prerrogativa de podermos escolher os melhores vinhos fortificados do mundo em Portugal para testar com essas infindáveis maravilhas da nossa doçaria típica. Que não nos falte saúde, sede e apetite pantagruélico para harmonizá-los!