A hora do “delivery”

Uma das pouquíssimas coisas positivas que a indústria da hospitalidade vai retirar da crise provocada pelo coronavírus é a assunção definitiva das refeições ao domicílio. Do “delivery”, termo em inglês que se popularizou em Espanha. 


Aqui, os longos dias de confinamento impuseram o lançamento definitivo. E desde então não parou de crescer. Nos últimos tempos, tão terríveis para o setor, ficou claro que o “take away” veio para ficar. Falo, claro está, de qualidade. Até o surgimento da pandemia, a entrega ao domicílio estava intimamente ligada ao “fast food”. Nestes meses, restaurantes de todos os níveis optaram, como forma de sobrevivência, por servir refeições em casa. Em alguns casos, criaram uma segunda marca, quase sempre adaptando a oferta, no sentido de incluir os pratos que são mais bem transportados. Este é um detalhe importante, pois nem todos os alimentos podem sair da cozinha do restaurante. Os pratos exigem por vezes um toque na cozinha do cliente, mas a maioria chega pronta a consumir.

Nos primeiros dias de março de 2020, quando foi decretado o confinamento total da população em Espanha, havia poucos restaurantes de certo nível que se animaram nesta aventura, mas como o fecho foi prolongado, o modelo cresceu. Aos poucos, a oferta ampliou-se, até a explosão registada pouco antes do verão. Uma explosão que muitos pensaram que seria temporária, mas que dura há muito. Nas principais cidades espanholas já é possível saborear, sem sair de casa, pratos elaborados por chefes relevantes com estrelas Michelin que competem com restaurantes “veteranos”, tabernas ou espaços de gastronomias estrangeiras. Muitas vezes com um nome diferente do da casa mãe para evitar confusão.

A lista é extensa. Há chefes com três estrelas Michelin como Dabiz Muñoz ou Quique Dacosta e outros com duas, como Ricard Camarena em Valência, os irmãos Torres em Barcelona ou Mario Sandoval, Paco Roncero e Ramón Freixa em Madrid. Entre eles, o madrilenho Dabiz Muñoz, chefe e proprietário do três estrelas Diverxo, é um dos que melhor se adaptou a esta nova realidade. Através da marca Goxo, envia, mediante reserva, alguns dos seus pratos mais informais a preços muito competitivos, tanto em Madrid como em Barcelona. Nas próprias palavras, “é a comida que gosto de comer e que gosto de cozinhar”. Pratos originais, intensos e muito pessoais. Como amostra, as lentilhas ao caril com camarão e hortelã ou os espaguetes caldosos com mexilhões, coco, piparras e café.

Na maioria dos casos, os envios são feitos apenas na cidade onde está localizado o restaurante. Mas há exceções, especialmente quando os restaurantes estão em áreas rurais ou em cidades escassamente povoadas. Nesses casos, os cozinheiros optaram por fazer envios para qualquer parte do país. Assim, Nacho e Esther Manzano (Casa Marcial, duas estrelas) e Pedro e Marcos Morán (Casa Gerardo, uma estrela), ambos localizados nas Astúrias e ambos em pequenas localidades, rasgaram o impedimento geográfico para distribuir em toda a Espanha, coincidindo na sua oferta, baseada na cozinha tradicional asturiana. É claro que os guisados e em geral os pratos mais tradicionais são os que viajam melhor. No caso do Morán, o seu merecidamente famoso feijoeiro, a tripa asturiana e um guisado de pitu de caleya, como são conhecidas nas Astúrias os frangos criados em liberdade. Há também favada e pitu (neste caso é alargado a um excelente arroz com este frango) na oferta dos irmãos Manzano, que incluem os seus cremosos croquetes de presunto. Neste último caso, os envios são feitos em caixas de madeira apelativas, que protegem e preservam os alimentos para as longas distâncias percorridas.

Este aspeto é importante. Embora o básico, claro, seja a qualidade da comida, a embalagem em que chega ao cliente também desempenha um papel fundamental no sucesso ou no fracasso de um ‘delivery’. Afinal, estes recipientes são equivalentes ao talher do restaurante e a apresentação, a estética, importa sempre. Das muitas refeições caseiras que pude experimentar nos últimos meses, prefiro a embalagem cuidada e original de Dani García, o chefe de Marbella que fechou o seu restaurante ao obter três estrelas com a marca “La Gran Familia Mediterránea”. Mas, para além da apresentação, é fundamental que estes recipientes garantam a correta conservação dos alimentos e a temperatura no trajeto está ao domicílio. E a sustentabilidade é cada vez mais importante, com o emprego de materiais recicláveis.


Restaurante em casa

Além do “take away”, durante a pandemia foi reforçada outra tendência que, até à chegada do coronavírus, mal estava presente. Em vez de o cliente ir ao restaurante, o restaurante vai até o cliente. Uma fórmula atrativa, se tivermos em conta que as instalações podem estar encerradas por obrigação e que, embora estejam abertas, muitas pessoas têm medo de se infetar em espaços fechados, por mais rígidas que sejam as medidas de segurança. 

No verão passado, foi lançada uma plataforma em Madrid e Barcelona para oferecer este serviço. O lema: “Em sua casa há sempre mesa”. Não se trata de um serviço de entrega ao domicílio, nem mesmo, embora possa parecer semelhante, um catering. A ideia é trazer toda a experiência do restaurante para espaços privados. O estabelecimento escolhido transfere parte do equipamento da sua cozinha (em muitos casos com o próprio chefe) e da sala, as louças e copos e até elementos decorativos para casa do cliente. 

Trata-se de proporcionar uma experiência única a quem pretende organizar um almoço ou jantar de alto nível em casa e, ao mesmo tempo, abrir aos restaurantes um novo ramo de negócio e expandir a sua capacidade, agora limitada por medidas preventivas. Cada estabelecimento oferece dois menus fechados. Um mais básico, com os pratos habituais da carta, e outro pensado para quem se quer presentear ou homenagear. A partir de duas pessoas e com preços mais ou menos aos do restaurante, com o acréscimo lógico pelo serviço, na seleção oferecida pela plataforma há algo para todos os gostos e carteiras. Desde um restaurante de duas estrelas, como o Coque, ou clássicos, como Horcher e Vía Venetto, a casas de gastronomia simples, mas de alta qualidade. É verdade que, quer com “delivery” ou modelos como este, nunca comeremos em casa como no restaurante, onde a experiência é muito mais completa, mas esta adaptação às necessidades do momento abre novos horizontes para a gastronomia.
 

Partilhar
Voltar