A tentação a que importa resistir

Seria um erro de palmatória tentar contornar a quebra de vendas que a pandemia tem provocado através da baixa de preços. Em poucos meses estariam a ser deitados ao lixo muitos anos de busca incessante por criação de valor, muito rapidamente caminharíamos para o território do descrédito ou da terra do nada.

 

Por muitas bolas de cristal, cartas atiradas para a mesa ou adivinhações que tais, nem bruxas nem bruxos conseguirão determinar como será o balanço e contas deste 2020. Estamos a desconfinar, é certo, mas um terrível grau de incerteza continua a pairar sobre a economia mundial, terminado que praticamente está o primeiro semestre do ano. Se o surto inicial da Covid-19 fechou fronteiras e dizimou perspetivas, um segundo ou terceiros surtos poderão ter impactos igualmente devastadores. Há, no entanto, duas frases batidas que ao longo dos tempos e das convulsões têm-se comprovado: as crises provocam uma espécie de seleção natural entre quem tinha fôlego e quem apenas aparentava respirar saúde; os que sobrevivem às crises sem amputações significativas saem reforçados e ficam em clara vantagem competitiva sobre os demais.


Ninguém está no negócio do vinho para empobrecer, ainda que alguns tentem transmitir essa ideia. Evidentemente, há escalas e dimensões bem distintas, mas até o micro produtor que faz do vinho modo de vida quer mais do que pagar despesas, quer viver do ofício e não somente sobreviver dele. Por grande paixão e emotividade que haja em fazer vinho, produzi-lo deverá ser sempre encarado como um negócio – só assim, aliás, se pode construir um futuro.


Ao longo dos últimos três meses, a Revista de Vinhos tem conversado com dezenas de operadores no mercado – produtores, distribuidores, importadores, lojistas… – e a conclusão geral a que se chega é evidente. Não só em Portugal como pelo resto do mundo, as marcas bem posicionadas no off trade (supermercados) têm conseguido ultrapassar esta fase sem grandes quebras, havendo até registo de aumento de vendas em segmentos e países específicos (no Norte da Europa e nos EUA, por exemplo). Pelo contrário, quem tem o negócio muito focado na hotelaria, restauração e pequenas lojas especializadas regista quebras significativas, que o enfoque repentino no comércio online não consegue disfarçar. 
O maior desafio enfrenta-o precisamente este segundo grupo de produtores, a maioria de pequena e de média dimensão, certamente expectante em perceber se a retoma de uma normalidade possível será rápida ou demorada.
Afastados das grandes superfícies por opção própria ou por não corresponderem aos critérios de volume e de preço mais ou menos convencionados, ao longo dos anos voltaram-se (e bem) para a área onde reputação, notoriedade e valor de marca se constroem – a restauração. Uns conseguiram-no fazer um pouco pelo país, outros em circuitos geográficos mais restritos: Lisboa, Porto, Algarve, Madeira. Por visão de futuro ou por necessidade de crises passadas, uma larga franja destes produtores apostou na internacionalização, investindo muito tempo e muito dinheiro para colocar vinhos em restaurantes e garrafeiras especializadas de Nova Iorque, Londres, Paris, Tóquio, Hong Kong ou São Paulo. Essas viagens permanentes fizeram-se ainda à custo de sacrifício pessoal, na convicção de que era possível rentabilizar a paixão de uma vida.


Este esforço individual, em muitas circunstâncias também coletivo, tem trazido frutos, obviamente não à velocidade que nós, portugueses, ambicionamos. A verdade é que Portugal deixou de ser “the next big thing” da crítica mundial para se tornar num caso sério de vinhos personalizados, com berços e terroirs tão diversificados como as castas a partir das quais são obtidos. Lentamente, existe a vontade do mundo em (re)descobrir Portugal também através do vinho.

Baixar preço não pode ser solução

Como é sabido, a restauração é dos setores mais agoniados pela crise. Muitos optaram simplesmente por fechar portas, outros tentaram uma pequena almofada de conforto no take-away. Todos, no entanto, sabem que essa não é a solução. A pouco e pouco alguns reabrem, mas será necessário esperar mais um pouco para percebermos quantos não o voltarão a fazer. A indústria do turismo, viagens e hotelaria também viu-se obrigada a cumprir serviços mínimos, o que não ajuda.
Os dados oficiais indicavam recentemente um novo aumento das exportações portuguesas de vinho, estimadas em 820,5 milhões de euros em 2019 (mais 2,5% face a 2018). O preço médio por litro vendido continua aquém do desejável (2,77€), ainda assim um crescimento de 2,3% por comparação ao ano anterior. A tendência dos anos mais recentes sugere um aumento progressivo de valor e quedas ligeiras de volume, algo que não é necessariamente mau. Pelo contrário, face à dimensão como país, o futuro no contexto global terá necessariamente de passar por vender menos mas vender melhor. As batalhas da quantidade não podem ser as nossas, devemos estar prontos a enfrentar a longa guerra da valorização no contexto mundial, expondo as nossas mais-valias de diferenciação.


Seria, portanto, um erro de palmatória tentar contornar a quebra de vendas que a pandemia tem provocado através da baixa de preços. Em poucos meses estariam a ser deitados ao lixo muitos anos de busca incessante por criação de valor, muito rapidamente caminharíamos para o território do descrédito ou da terra do nada. Afinal, processar uva é bem diferente de ser produtor de vinho…
Haverá este ano pressão dos mercados para que o produtor baixe preços? Certamente, mas também este ano tem havido pressão do Míldio sobre a generalidade das regiões e não é por isso que não se trata a vinha para garantir a próxima vindima. 
Os tempos que vivemos são difíceis e continuarão desafiantes, mas a notoriedade e a agregação de valor integram um processo contínuo de esforço e de construção, tantas vezes estendido por gerações, que não pode ficar à mercê de um negócio ocasional, por mais tentador que aparente ser no momento.


Diferentes especialistas económicos têm previsto uma retoma mais rápida no pós-crise. Longe de dominar essa esfera de previsões, acredito que os clientes voltarão a encher as salas dos restaurantes, os aviões e os hotéis. Estamos a reaprender alguns dos códigos da vida em sociedade, mas continuamos ávidos por novas descobertas, por comer e por beber bem, por regressar aos sítios de sempre.
Nervos de aço, paciência de chinês, convicção redobrada. Será um pouco de tudo isto que se espera do produtor de vinhos nesta fase.

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