Bairrada e Baga

A Wine Detective investiga o seu crescente apelo e plasticidade.

 

Após uma série de entrevistas realizadas com diversos produtores, a Baga, casta bandeira da Bairrada, tem estado nas minhas cogitações. Contra todos os caprichos da moda, Dirk Niepoort (Quinta de Baixo) afirmou que “o patinho feio de quem ninguém gostava tornou-se o vinho mais apreciado pelos conhecedores portugueses”. Mas, no caso da Baga, o fenómeno não é simplesmente um caso de jeans largos que voltaram a estar na moda. Em vez disso, a transformação do conto de fadas de Hans Christian Andersen - de patinho feio para um lindíssimo cisne – reflete também uma faceta da Baga que, até recentemente, foi negligenciada.


Para Eduarda Dias e Luís Patrão (vinhos Vadio), a Baga é única, “pela sua plasticidade”. Ampliando consideravelmente o apelo da Baga para além dos conhecedores tradicionais que guardam vinhos, Patrão observa que “podemos fazer um vinho espumante muito elegante, forte e delicado, um tinto jovem fresco e suculento e um vinho ousado e estruturado que pode envelhecer por muito tempo”. Ou, para seguir a analogia da moda, a Baga da Bairrada passou a ter uma linha de assinatura (clássica) e gamas mais acessíveis (de difusão). Tomemos como exemplo o Bebes.Comes Bairrada 2018, um ‘vin de soif’ Baga criado pelo casal para o projeto ‘Collection’ deste blogue de lifestyle e, por outro lado, o Vadio Rexarte 2015, um novo cuvée de topo single vineyard, comercializado a 85,00€.
Também os vinhos Missấo, de Filipa Pato e William Wouters, cobrem uma gama ainda mais diversa, incluindo um vinho ‘glou glou’ de Baga envelhecido em ânfora e um exemplar fortificado. Recusando firmemente a reputação austera da Baga no passado, Wouters descreve a casta como “uma variedade divertida para se trabalhar”. É muito diferente do que acontecia há 40 anos atrás, quando o seu sogro começou nestas lides. Nessa altura, diz Luís Pato, os vinhos da casta “era tão ásperos, difíceis e ácidos que só se tornavam bebíveis para uma pessoa normal depois de 10, 15 ou 20 anos”. Resolvendo o problema, o veterano de 40 vindimas recorda o seu “jeito de suavizar a Baga”, em que a “maturação polifenólica [tanino] era a chave”. Uma chave que, por sua vez, desbloqueou os mostos responsáveis pelas expressões deliciosamente diferentes de hoje.

Novos Bagas do antigamente

Os produtores adotaram métodos alternativos para “suavizar” a Baga monovarietal. Em 1985, Luís Pato foi o pioneiro do desengace (para eliminar os taninos do engaço) e do carvalho francês (para polir as arestas). Seguiu-se a vindima em verde (então inovadora) e o plantio de parcelas em pé franco para reduzir rendimentos (avançando o processo de maturação). Outros concentraram-se em parcelas antigas, naturalmente de baixo rendimento (por exemplo, Pato & Wouters, Niepoort, Giz). Em contrapartida, com o Vadio, Luís Patrão replantou e reestruturou vinhas, mudando o sistema tradicional para cordão unilateral com maior densidade foliar para obter melhores maturações e menores rendimentos, sem recorrer à apanha em verde.


As vinhas da Niepoort, Vadio e Pato & Wouters estão em transição para a certificação orgânica ou biodinâmica, modos em cujo granjeio, concordam, auxiliam a maturação e permitem a vindima antecipada, com volumes de álcool mais baixos. Para Filipa Pato, agora membro da Associação Biodinâmica de Portugal, isso reflete um desejo não só de ser amigo do ambiente, mas também a sua convicção de que os vinhos do passado eram muito melhores, porque não se usavam herbicidas nas vinhas.
Leveduras mais suaves de “infusão e não extração” são outro aspeto da história de sucesso da casta, contribuindo para que os vinhos possam ser bebidos mais jovens, sem necessariamente reduzir o valor da idade. Como resultado da obtenção de uma melhor qualidade dos taninos - tanto na vinha como na adega - a nova geração de produtores de Baga está a abraçar o retorno aos métodos tradicionais, nomeadamente a fermentação com engaço (cachos inteiros) e carvalho de formatos maiores. De facto, em 2020 - “um ano fantástico para a Baga”, relata Luís Pato - o inveterado desengaçador foi ao outro extremo, ainda que para um lançamento em edição limitada. Fermentou 300 litros (400 garrafas) de Baga da Vinha Barrosa (a sua vinha mais antiga) com cachos 100% inteiros porque, disse, “agora sei gerir os taninos com a Baga”. Marcando o seu próprio progresso, Filipa Pato relata que, nos últimos oito anos, identificou a janela de colheita ideal - “por vezes de apenas quatro dias, em que os taninos não estão secos (porque as uvas estão sobremaduras) e não estão verdes (porque são colhidas muito cedo)”.


Nesta época dourada, poderá a Baga conquistar o mundo? Espero que sim, no que diz respeito aos vinhos da Bairrada. Mas e a própria casta? Apesar da sua plasticidade, as expressões monovarietais continuam teimosamente enraizadas na Bairrada. Embora a sétima uva mais plantada em Portugal seja comumente encontrada ao lado, no Dấo, a Baga é tipicamente lotada com outras uvas (o que, aliás, é verdade para a proporção considerável da Baga bairradina destinada ao Mateus Rosé). Noutros locais, surgem exemplos estranhos - Quinta do Vale Meão Monte Meão Vinha da Cantina (Douro), Fita Preta Baga Ao Sol (Alentejo), Quinta dos Termos A Surpresa de Virgílio Loureiro (Beira Interior) e Quinta da Serradinha Baga (Lisboa).
Isso pode não ser mau de todo, se atendermos à edição revista da obra “Which wine grape varieties are grown where? A global empirical picture”, atualizada com dados de 2016. De acordo com o compêndio de Kym Anderson e Signe Nelgen, a Baga destaca-se entre o top 100 das variedades de uvas no mundo, ocupando a 97ª posição. Surpreso? Eu também. Afinal, com apenas 6.750ha globalmente, contra 310.671ha da variedade número um - Cabernet Sauvignon -, é um pequeno ‘player’, representando somente 0,15% contra 6,93% da área global de uva para vinho. A pesquisa aborda o domínio de um grupo de castas francesas (ditas “internacionais”).


Anderson e Signe relatam que metade das plantações do mundo eram responsáveis por 21 variedades em 2000 mas, em 2010, esse valor caiu para 15 variedades e aumentou apenas uma, para 16, em 2016. As variedades Cabernet Sauvignon e Merlot mais do que duplicaram as suas quotas, saltando do 8º e 7º para o 1º e 2º lugares. As castas Tempranillo e Chardonnay mais que triplicaram as quotas, conquistando o 3º e 5º postos, enquanto a Syrah catapultou-se da 36º para a 6º posição. As castas Sauvignon Blanc e Pinot Noir também passaram para os dez primeiros. Essa homogeneidade preocupante recordou-me um conceito que Filipa Pato mencionou numa entrevista anterior: “Pensa global, age local”. Parece cada vez mais importante proteger os habitats locais. E isso inclui castas autóctones.
 

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