Os clássicos nunca saem de moda

O lamento frequente de alguns produtores que elaboram vinhos de perfil clássico, a queixar-se disso mesmo, de serem clássicos e não estarem supostamente na crista da onda num determinado momento, parece-me absurdo. Ora, ser-se um clássico no vinho não será das maiores vantagens competitivas sobre a demais concorrência?


Por estes dias, o vinho de que o mundo fala é o Marqués de Murrieta Castillo Ygay Gran Reserva Especial 2010. A norte-americana Wine Spectator (WS) coloca-o no primeiro lugar do TOP 100 anual, onde apenas consta um vinho português – o Pintas 2017, tinto do Douro de Jorge Serôdio Borges e Sandra Tavares da Silva, listado na 87ª posição. 

As avaliações são sempre discutíveis, mas seria a negação de uma evidência menosprezar a importância que o ranking anual daquela que é tida como a bíblia do vinho tem no mundo – uma esfera de influência que atinge a generalidade da indústria e, claro, o consumidor.

No caso em concreto do vencedor, a WS define-o como um “lovely example of the traditional style”. Elogia-lhe a riqueza e a harmonia e perspetiva-lhe uma vida de pelo menos mais uma década em garrafa.

Murrieta é um nome maior da Rioja, porventura a mais bem cotada região de vinhos espanhola. A história de ambos parece confundir-se, na medida em que foi Luciano de Murrieta quem, em 1852, elaborou o primeiro vinho da Rioja de acordo com o conceito do que é hoje um vinho daquela região. A Finca Ygay lembra um château francês. Está rodeada por 300 hectares de vinha com um quinteto dominante de castas: Tempranillo, Mazuelo, Garnacha, Graciano e Viura. Os solos são maioritariamente argilo-calcários e a altitude máxima das vinhas ronda os 500 metros.

As parcelas de vinha estão identificadas e delimitadas exaustivamente, trabalho minucioso que acaba por se refletir na generalidade dos vinhos. A produção média anual é de 1,2 milhões de garrafas e somente é vinificada uva própria. O parque de barricas atinge as 10.000 unidades mas hoje, porque o mercado a isso obriga, os tempos de estágio baixaram e a presença da barrica está muito mais contextualizada com a fruta, a frescura e a acidez. O primado passou a ser o “terroir”, com ênfase dado ao solo e à fruta. A enologia, atualmente a cargo de María Vargas, nota-se sobretudo nas combinações de barricas novas e usadas, na opção crescente pelas barricas de carvalho francês (de porosidade mais fina, que permitem uma evolução mais lenta do vinho e transmitem notas mais balsâmicas e menos abaunilhadas).

Os vinhos Marqués de Murrieta não são óbvios. Obrigam-nos a refletir sobre eles. Não tive ainda a oportunidade de provar o Castillo Ygay Gran Reserva Especial 2010 mas provei o 2009, igualmente elaborado a partir das castas Tempranillo e Mazuelo, de uma única parcela a 485 metros de altitude, o ponto mais alto da propriedade. Recordo o que escrevi sobre ele na Revista de Vinhos nr. 359: “Mogno, laivos rubi. Cereja escura, especiaria fina, balsâmicos e mentolados. Tanino elegante, acidez firme, estrutura harmoniosa e fresca, final muito longo com nota de tabaco. Apurado e repleto de detalhes, chega a ser filosófico e desnuda-se em camadas. Para acompanhar um charuto à lareira”.

A 54ª edição do Ygay Gran Reserva, que o mundo agora corre para agarrar uma singela botella que seja, é de 2010 e só agora chega ao mercado. Comprova aquilo que a generalidade de nós defende – o tempo, apenas o tempo consegue elevar um bom vinho ao patamar de um grande vinho. É preciso coragem do produtor em lançá-lo no mercado nas proximidades do momento ideal para lhe percecionarmos toda a dimensão, assim como é necessário da parte de todos nós, consumidores, aprendermos a saber esperar (ou guardar) por vinhos e garrafas que serão infinitamente mais completos volvidos alguns anos. Incorremos na ânsia injustificada de querermos beber grandes vinhos no mesmo ano ou no ano seguinte à vindima, o que é mera ilusão; poderemos até beber bons vinhos, mas nunca serão grandes vinhos. O tempo é o que os molda e os faz maiores.


A vantagem de ser um clássico

Mas, a eleição do Marqués de Murrieta Castillo Ygay Gran Reserva Especial 2010 pela WS motiva-me reflexões complementares, acerca do classicismo no vinho.

O setor move-se constantemente por entre modas mais ou menos passageiras, por vezes até tendências de estilos e de perceção que vingam ou caem por terra volvidas umas temporadas. Por ser tão dinâmico e cada vez melhor interpretado e difundido, o vinho é e continuará a ser assim. O que me parece absurdo é o lamento frequente de alguns produtores que elaboram vinhos de perfil clássico, a queixar-se disso mesmo, de serem clássicos e não estarem supostamente na crista da onda num determinado momento. Ora, ser-se um clássico no vinho não será das maiores vantagens competitivas sobre a demais concorrência?

A aspiração de um micro produtor ou mesmo de uma empresa com alguma dimensão e experiência no mercado é conseguir ter um ou mais vinhos que alcancem o estatuto de clássico junto de distribuidores, lojistas, sommeliers, crítica e consumidores. É isso que torna um determinado produto aspiracional, que faz com que tantos fiquem na predisposição de mover montanhas para o adquirir, é isso que suscita a cobiça.

Esse classicismo, todavia, não significa uma absoluta paragem temporal. Podem e até serão saudáveis mudanças subtis de perfil ou de interpretação de vinhas, de evolução nos processos de vinificação e de estágio. Se parar é morrer, estagnar poderá ser agoniar.

Quando estamos diante um clássico queremos comprovar o acerto da nossa escolha, sentir o conforto da prova de um vinho que sabemos possuir um determinado ADN, uma personalidade inconfundível, um carácter tão seu. No caso português, quantos potenciais Murrieta teremos? A grande diferença, com certeza que sim, estará na forma como não saberemos posicioná-los, promovê-los, comunicá-los convenientemente.

De tal modo o clássico é uma incomparável mais-valia face ao imediatismo, que importa refletir num dos mais recentes alertas lançados na indústria do vinho. O italiano Sandro Bottega avisa ser urgente aumentar rapidamente a perceção de qualidade acerca dos Prosecco, sob pena de a estratégia de preços baixos dizimar o futuro daquela tipologia de vinho borbulhante. O aviso amarelo passa a laranja, a partir da altura em que Bottega diz que a produção atingiu o limite possível, sendo a sustentabilidade o grande objetivo que deveria ser cumprido, advogando que além de ser preciso pagar mais e produzir menos será obrigatório pensar-se em beber menos mas melhor. Como sabemos, Prosecco tem sido o estilo de vinho espumante que mais crescimento tem tido à escala global, pelo que os alertas agora lançados pelo responsável da Bottega, um dos mais conceituados produtores de Prosecco, são particularmente relevantes. 

Ora, este ponto leva-me a outro ângulo de análise. Que clássico ambicionamos no vinho e que interpretação deveremos aliar ao termo “clássico”? Aquele que tem uma produção limitada e é vendido num patamar elevado de preço ou simplesmente aquele que se tornou num clássico por ser bom e barato? 

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