Os cozinheiros de D. João VI

Há dois séculos o rei D. João VI (1767-1826) voltou a Portugal, depois de permanecer 13 anos no Brasil. Havia mudado para o Rio de Janeiro em 1808, junto com a sua corte, escapando das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiram Portugal e ocuparam Lisboa. Os historiadores antimonárquicos do início do século XX descreveram D. João VI como uma figura grotesca, indecisa e fraca. Mas esse perfil não corresponde à verdade. Sim, podia ser um rei tímido, contido nas emoções e triste, mas também era um político preocupado com a justiça e movido por impulsos de bondade. 


Dificilmente se consegue traçar um perfil correto do 28º soberano de Portugal, tantas são as zombarias que lhe fazem em livros, filmes e afins, umas com algum fundamento, outras absolutamente gratuitas. Até porque D. João VI prestava-se à chacota. Era baixo, barrigudo e feio, tinha pavor do banho, morria de medo dos trovões, enrolava-se nas cortinas do palácio para não ouvir o estrondo da descarga elétrica atmosférica; e, para completar, revelava apetite pantagruélico. 

Devorava nove franguinhos por dia, três ao almoço, três ao jantar e três na merenda; comia 12 pratos diferentes numa refeição. Não usava talheres, como a maioria das pessoas do seu tempo, “trinchando as aves com as mãos, que limpava depois em um guardanapo, atirando-o ao chão”, segundo o cronista fluminense C.J. Dunlop no livro “Rio Antigo” (Editora Rio Antigo, Rio de Janeiro, RJ, 1960). Ah!, complementava cada refeição com quatro ou cinco laranjas-de-umbigo, queijos e doces. 

Segundo a lenda, só foi visto chorando duas vezes, em duas encruzilhadas da vida, ambas na cidade do Rio de Janeiro. A primeira aconteceu a 20 de março de 1816, no velório de sua mãe, a rainha D. Maria I, que no Brasil é chamada de “a Louca”, porque chegou lá transtornada mentalmente.  Ainda em Portugal, nos tempos de lucidez, D. Maria I contratou os serviços do chefe francês Lucas Rigaud, autor de “Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha”, publicado em 1780, do qual  há uma edição de 1999, lançada pela Colares Editora, em cujo prefácio Alfredo Saramago, autor de obras de história e antropologia das tradições gastronómicas da pátria, escreveu: “É o livro que marca a viragem da cozinha (portuguesa) até aí tida como pesada e prisioneira do excesso de condimentos. E o advento da chamada cozinha romântica, que Carême, em França, tanto celebrizou”.

Alguém levantou a possibilidade de Lucas Rigaud ter acompanhado D. Maria I na transferência para o Brasil. O problema é que não se sabe se o chefe francês estava vivo em 1808, quando a corte desembarcou no Rio de Janeiro. Na verdade, o “mestre dos cozinheiros” ou “das cozinhas”, como se dizia, que embarcou em Lisboa com a corte chamava-se Vicente Paulino e preparou a bordo a comida de D. Maria I, do filho e dos netos Pedro e Miguel. Lidou com os ingredientes possíveis na travessia: peixe seco ou em salmoura, carne-de-sol, paio, chouriço, presunto, toucinho, galinha e porco, temperados com alho, cebola, alecrim, pimenta, azeite, vinagre e sal. Morreu no Rio de Janeiro em 1813, sendo sucedido por José da Cruz Alvarenga. Aliás não foi uma substituição pacífica. 

O chefe Alvarenga disputou posto com Torres, outro colega. O episódio foi relatado por Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, Bibliotecário Real, na sua correspondência particular: “Ontem faleceu Vicente Paulino, mestre das cozinhas em cujo lugar hão de haver grandes cacheiradas (cacetadas, pauladas) entre Torres e o Alvarenga, porque ambos querem campar (desfrutar)”. Perdendo a disputa, Torres conformou-se com o posto de ajudante de Alvarenga. “Isso tudo se encontra documentado no nosso acervo”, assegura o historiador Carlos Ditadi, pesquisador do Arquivo Nacional, do Rio de Janeiro.

O cozinheiro Alvarenga, também português, não quis voltar a Lisboa. Aposentou-se e continuou a viver no Rio de Janeiro, “Amancebou-se com uma negra formosa”, cochichou o povo. C. J. Dunlop, no livro “Rio Antigo”, em três volumes, conta que D. João VI elogiava sempre as aves que ele preparava e, por isso, afeiçoou-se ao cozinheiro. “Só o Alvarenga sabe fazer os frangos como eu gosto”, afirmava o patrão comilão. O príncipe regente e depois rei saboreava as aves com as mãos e deitava os ossos ao chão. A seguir, lavava as mãos na água de uma bacia de prata ou limpava-as diretamente num guardanapo ou toalha. Os galináceos sempre lhe deram água na boca. Era predileção familiar, que vinha de D. João IV (1608-1656), primeiro soberano da dinastia, portanto estava no seu DNA. Alcançaria o neto D. Pedro II (1825-1891), segundo imperador do Brasil, fanático por canja de galinha e, particularmente, de macuco (ave selvagem brasileira de grande porte, da família dos tinamídeos). 

Os Bragança apreciavam os galináceos de todos os jeitos: grelhados ou assados no forno, ensopados, desfiados, com arroz. Gostavam sobretudo de duas veteranas receitas lusitanas: a galinha albardada, envolvida com gemas e claras batidas, frita na manteiga e temperada com açúcar; e a galinha mourisca, montada em pedaços dispostos sobre fatias de pão, engalanadas por ovos escalfados. São pratos antiquíssimos. Aparecem no “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria”, que reproduziu o caderno de receitas da neta de D. Manoel I, casada em 1565 com o nobre italiano Alessandro Farnese, 3º Duque de Parma e Piacenza.  

No Rio de Janeiro, a paixão gastronómica causou transtorno. Os comerciantes reclamaram que a mantearia (casa onde se guarda tudo o que pertence à mesa real) e a ucharia (despensa, especialmente para carnes) arrematavam todos os galináceos nos mercados e feiras, prejudicando o fornecimento aos demais fregueses. Acontece que a casa real também destinava os galináceos ao consumo dos criados e soldados a seu serviço, às ordens religiosas, orfanatos, asilos e hospitais. A carne da galinha era considerada imprescindível no combate às gripes e resfriados, bem como na dieta de parturientes e convalescentes das doenças em geral. 


Pela boca morre o rei

Tudo indica que o guloso D. João VI morreu pela boca. No ano 2000, um grupo de peritos lusitanos, depois de analisar os seus restos, chegou à conclusão de que ele foi envenenado com arsénico. Em princípio, o veneno teria sido inoculado na comida. “Efetivamente, D. João VI foi morto por uma intoxicação por arsénico, provavelmente numa só dose e sem possibilidade de recuperação”, afirmou o especialista Fernando Rodrigues Ferreira, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, membro do grupo. 

Mas é impossível imaginar o Brasil sem D. João VI. Sua Alteza pertencia à Sereníssima Casa de Bragança, que governou Portugal de 1641 até 1910, quando foi implantada a República. O seu domínio abrangia Portugal, Brasil e Algarve. Desembarcou no Rio de Janeiro com a corte lusitana que o acompanhou no translado, ou seja, 10.000 ou 15.000 pessoas, apinhadas em 8 naus, 3 fragatas, 2 brigues, 1 escuna, 1 charrua de mantimentos e 21 navios mercantes, além dos 4 navios de guerra britânicos da escolta.

Logo após se estabelecer no Rio de Janeiro, D. João VI viabilizou o Brasil, favorecendo indiretamente a criação de um país cuja independência o filho D. Pedro I (o mesmo D. Pedro IV de Portugal) proclamaria em 1822. “Abriu os portos da (então) colónia ao mundo”, lembra Paulo Setúbal no livro “As Maluquices do Imperador”. “Criou o desembargo do Paço. Organizou o Banco do Brasil. Fundou a Escola de Medicina. Fundou a Academia de Belas-Artes. Fundou a tipografia régia. Construiu a fábrica de pólvora. Mandou explorar as minas de ferro do Ipanema. Fez o Jardim Botânico. Abriu a Biblioteca Nacional”. 

Os historiadores antimonárquicos do início do século XX chamaram D. João VI de fujão. Sustentaram que lhe faltou coragem para enfrentar o exército napoleónico. “Zarpou de Lisboa para salvar a própria pele”, zombou um deles. Ironizou que, chegando ao Rio de Janeiro, a sua maior preocupação seria saborear em paz os nove franguinhos por dia. Não foi bem assim: as tropas napoleónicas assustavam porque pareciam invencíveis. Bem treinadas e fortemente armadas, alcançaram sucessos anteriores em várias frentes de batalha na Europa. Certo, entraram em Lisboa aos frangalhos, mas quem sabia?

Além disso, não se "foge" para a própria “casa”.  D. João VI transferiu-se para uma colónia do seu reino. Portanto, não saiu de Portugal. A sua estratégia deu certo. A Casa de Bragança manteve-se no trono. Recordemos a menção pesarosa que lhe fez Napoleão Bonaparte, no livro “Memórias de Santa Helena”, ditado no exílio ao Conde de Las Cases. Referindo-se à vinda de D. João VI para o Brasil, o imperador dos franceses afirmou: “Foi o único que me enganou”. Considerá-lo fujão é uma acusação discutível; glutão, sim, e enfatize-se a imoderação.

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