Troca de papéis entre críticos e consumidores

Durante a crise da Covid, abundaram os títulos dos jornais sobre a alteração dos padrões de consumo de vinho. No que se refere à prova, a forma como me relaciono com o vinho também mudou. Há um elemento de “troca de papéis” entre consumidores e críticos que, suspeito, tem benefícios potenciais a longo prazo para produtores e retalhistas.


Obviamente que os escritores de vinhos também são consumidores, mas a nossa profissão está um mundo à parte do crítico de restaurantes, cuja experiência tem muito mais elementos em comum com os consumidores regulares. Aqueles não apenas provam os pratos mas consomem as refeições. Cuspir seria inconcebível! Além disso, jantam no contexto preciso que o restaurador pretende (ou seja, num ambiente específico, com as perceções sobre o menu, os ingredientes, estilo de cozinha e técnicas). Malditos sejam, os críticos de restaurantes chegam até a empurrar o jantar com vinho…

Por isso, tendo em vista mentes desanuviadas e fígados saudáveis, cuspir é obrigatório quando se trata de interação profissional com o vinho. De que outra forma poderia alguém navegar por entre provas, programas intensivos de visitas a produtores ou painéis em concursos, quando facilmente se podem provar até 100 vinhos por dia? Isso explica a razão por que a revista Monocle tenha legendado um artigo sobre o estimado diretor da Revista de Vinhos desta forma: “Este jornalista passa os dias a avaliar vinhos; receber pessoas é uma forma de apreciá-los”.

Não estou a pedir que o caro leitor tenha pena dos escritores de vinho. Acredite, sabemos o quanto somos privilegiados, com oportunidades de prova de grande amplitude e profundidade. Visitar ou provar com produtores fornece-nos tanto o contexto como perceções inestimáveis. Creio que é a forma mais atraente para alguém se envolver com o vinho e, liderando tours na Austrália e em Portugal, conheço o seu impacto nos consumidores. Além das experiências ‘normais’ de adega, os meus sempre interessantes 'groupies' valorizam o acesso aos ‘bastidores’ das adegas e vinhas, às experiências exclusivas de prova e, o mais importante, às pessoas – ‘as estrelas do rock’ por trás dos rótulos. Vejamos os irmãos António Luís Cerdeira e Maria João Cerdeira, da Quinta de Soalheiro que, na sequência de uma prova ‘por medida’, ofereceram um longo almoço com os seus próprios produtos e vinhos. Tal como adolescentes, o meu grupo (em grande parte reformados) vaiava quando regressávamos do Soalheiro à Galiza para continuar a provar Albarinos. Aplaudindo ruidadosamente aquando do nosso retorno a Portugal, o marcador assinalou Portugal um, Espanha zero.


O valor das provas online

Durante o confinamento, as provas online permitiram aos produtores atingir um público de consumidores muito mais vasto (incluindo aqueles sem tempo ou orçamento para visitar regiões vitivinícolas). Quando me juntei à primeira degustação via Zoom da Cullen Wines, os consumidores ficaram entusiasmados em conversar sobre vinhos com produtores de Margaret River, Austrália. Pioneira da biodinâmica e da produção sustentável de vinhos, Vanya Cullen pode ser uma das principais produtoras da Austrália mas, ao responder às perguntas, foi calorosa, aberta e generosa com o seu conhecimento e tempo. Com as vendas online a subir, planeia continuar as provas por Zoom quando a oportunidade o justificar - por exemplo, novos lançamentos.

O produtor de Vinho do Porto Óscar Quevedo, pioneiro dos media sociais, disse-me que a Covid “intensificou essa necessidade de se ligar ao consumidor” por parte dos pequenos produtores independentes como ele, que se recusam a reduzir preços (ou qualidade) para entrar nas listas dos supermercados. Em parceria com Tony Carter, retalhista do Reino Unido na Vintage Wine & Port, organizou um evento online para 170 clientes, que compraram meia garrafa dos seis Vinhos do Porto em prova. Desde então, relata Carter, “o Óscar conquistou muitos seguidores”; alcançando um público mais jovem, diferente, “as vendas de Porto Quevedo aumentaram 600%... O número de clientes que repetem a compra é incrível”.

Para Carter, as provas online são “um grande passo em frente” porque os vídeos podem ser vistos repetidamente, ajudando a vender mais e, uma vez que “a Google gosta de conteúdos de vídeo, também nós recebemos um impulso”. Carter vislumbra um futuro em que “os enólogos sentam-se junto às vinhas, transmitindo diretamente para o consumidor final, que pagará para provar os vinhos e ligar-se ao produto, ao produtor e à sua filosofia de produção”.

Outra dinâmica a tomar forma decorre do fecho de restaurantes, que contribuiu para aumentar o gasto por garrafa nas compras domésticas, colocando o vinho na frente e no centro da socialização e das refeições em casa. De acordo com a Wine Intelligence, o alcance do fenómeno na China vai além daqueles já interessados em vinhos, uma vez que este grupo incentiva colegas menos envolvidos a conectarem-se para beberem vinho durante conversas online. Como os restaurantes e fornecedores passaram a vender vinho online, tem sido divertido partilhar sugestões variadas (e dicas de harmonização) com os amigos, que se tornaram mais aventureiros nos seus hábitos de compra (e de cozinha) de vinhos, à medida que procuram recriar essas experiências gourmet em casa. Alguns fazem até anotações detalhadas e pontuam vinhos.

Por outro lado, com o panorama londrino confinado, tenho recebido amostras em casa, o que significa provar de forma mais seletiva, mas mais intensiva – ou seja, mais elaborada e menos instantânea. Os críticos estão habituados a provar amostras de casco e vinhos jovens em pouco tempo (agitar, cheirar, cuspir, não engolir), mas ajuda podermos demorar mais tempo com vinhos complexos - especialmente novos lançamentos icónicos, como o australiano Henschke Hill of Grace 2015, que me levou horas, dias até, para desvendar. Embora a maior parte do conteúdo de uma garrafa seja invariavelmente descartada, provar em casa aumentou as oportunidades de experimentar os vinhos como o seu criador pretende - com comida e, ouso dizer, por vezes até bebendo-os. Aproximar-se de uma experiência de consumidor só pode beneficiar o meu público-alvo.

Tendo em mente os clientes de restaurantes, Jancis Robinson MW previu “um aumento dramático da procura por garrafas de menor capacidade” após o confinamento. Espero que essa procura seja impulsionada também por novos hábitos domésticos de consumo e prova. Com preços inferiores, as garrafas mais pequenas podem aumentar o acesso dos consumidores a provas online e vinhos mais diversificados e de maior qualidade, bem como estimular o serviço de vinho a copo nos restaurantes. Para os críticos, as provas ditas comerciais têm o seu espaço mas, economicamente falando, há mais espaço para prova em casa com garrafas mais pequenas. E mais espaço, literalmente falando, se as amostras puderem ser engarrafadas em tamanhos reduzidos!

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