Um “pitéu” de raia

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

Tal como as longas viagens da faina do bacalhau que deram origem ao aproveitamento das partes consideradas menos nobres do gadídeo - como caras, sames ou línguas - em belos petiscos, também a raia e a necessidade de sobrevivência inspirou outra iguaria que ficou no receituário nacional: o pitau. A semântica do aproveitamento é uma das caraterísticas principais da nossa cozinha e este é mais um exemplo de como a imaginação das classes populares ligadas ao mar ou à terra recriavam a natureza.


Como no caso dos salmonetes, o fígado da raia é o ingrediente principal de um molho apetecível, uma forma de aproveitar um órgão nutritivo e saboroso que seria desperdiçado. Negro e cremoso, salino e ligeiramente acre, convoca a um pitéu num molho sui generis e luxuriante. Esse mesmo nome pontifica na corruptela “pitau” que batiza este prato tradicional. O dialeto, acrescido da dificuldade em se fazer ouvir no alto mar, degenerou “pitéu” na palavra “pitau”, nome desta célebre composição portuguesa nascida em alto-mar, tal como as caldeiradas, onde também a raia acrescenta caráter.

Caráter, aliás, é o que não falta ao cozinheiro que escolhemos para meter mãos à obra neste prato. João Domingues Damas, antigo pescador, tem 85 anos e há mais de 50 está ao leme do restaurante Lila, em Mira, deixando assim as fainas da pesca de bacalhau na Terra Nova.

Olhos de lobo-do-mar, azul que combina com o oceano, mesmo ali ao lado, e a cor da capela de Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos pescadores, construída em madeira e um dos poucos palheiros que existe na povoação. Seria, aliás, seu pai quem o ensinaria a fazer o prato de pitau, ainda no restaurante original da família, frente ao mar. Se existisse esse mesmo lugar teria mais de cem anos. 

Quem entra num restaurante de pescadores sabe que há peixe fresco sempre à mesa. Humilde mas histórico e com fama na zona, o local celebra o passado com várias fotografias centenárias que mostram como se vivia em Mira noutros tempos, sobretudo a comunidade piscatória, ainda hoje emblemática na arte xávega, pesca de arrasto com barcos saveiros, tipo meia-lua. Inicialmente, o “pitau” de raia fazia-se até com as “asas” (barbatanas) do peixe, ou seja, é uma receita que segue as dicas de sustentabilidade tão em voga nos dias de hoje. Nada se desperdiça. Até porque para alguns, as partes mais apreciadas da raia são as "asas", as "bochechas" (a área à volta dos olhos) e o fígado.

Para fazer o pitau, só precisa seguir alguns passos de fácil execução. Depois de bem lavada, raspada a pele (para retirar o muco, que alguns chamam manteiga), e esfregada com limão, tempera-se de sal. 

João tem já a raia cortada aos pedaços - em “pencas” (nome dado na região à raia cortada em tiras de alto a baixo) - que põe a cozer com batatas em água abundante com sal e vai preparando o molho. Num tacho com azeite junta um pouco de polpa de tomate, uma colher de sopa de colorau, meia colher de sopa de pimenta, vinagre, duas colheres de alho picado e piri piri. Esmaga os figados e junta ao tacho, mexendo bem, “para fazer o pitau à maneira”. Pouco tempo depois, é só acrescentar um bocadinho da água da cozedura da raia e misturar ao molho, juntando tudo e levando de novo ao lume a apurar. Está pronto.

A sapidez da raia é notória devido à sua alimentação, fundamentalmente constituída por crustáceos e moluscos, mas sempre foi considerada, erradamente, um peixe menos nobre, atribuído ao consumo das classes sociais mais desfavorecidas por ser de preço acessível. O receituário é, assim, fundamentalmente popular e muito simples. Por isso mesmo, refinado. Para além do “pitau”, a raia alhada e enxambrada são outras fórmulas populares de a recriar no prato mas “de comer e chorar por mais”.

A primeira, como o nome indica, é feita com bastante alho e a segunda respeita um processo de secagem, sendo depois grelhada e desfiada. Ainda hoje existe esta tradição de secar a raia na zona entre Aveiro e Mira, tal como se procede com a chamada “caneja d’infundice”, mais abaixo, para os lados da Ericeira e Sesimbra. O processo causa um cheiro insuportável mas, acreditem ou não, no final o sabor é excelente. Neste último, caso os pescadores embrulham o cação num pano e enterram por duas semanas. Depois desenterra-se e coze-se. Só para corajosos.

Um peixe voador da família do tubarão

De corpo achatado e em forma de trapézio, as raias adaptam-se à profundidade dos mares e confundem-se com o fundo marinho. Conseguem, assim, mimeticamente escapar dos predadores, já que passam a maior parte do tempo inativas e enterradas na areia, a várias dezenas de metros de profundidade. A raia locomove-se com nadadeiras peitorais, pelo que as suas barbatanas parecem asas e a sua cauda possui ferrões venenosos, por vezes mortais. Espécie de papagaio de papel dos mares.

Próximas dos tubarões em termos filogenéticos, possuem esqueleto cartilagíneo e fendas branquiais em posição ventral, o que permite os seus movimentos ondulatórios na água, mais parecendo uma dança coreografada. Peixe cartilaginoso batóide, da família dos raiídeos e da classe dos seláquios, para além da sua carne firme e saborosa, a sua cartilagem é outro chamariz. Há quem goste até de comer essa parte do peixe, pela crocância. 

Por ser um peixe cartilaginoso, tem de permanecer em movimento contínuo para forçar a água a penetrar nas brânquias, ou seja, nunca pára de se movimentar, o que torna a carne firme. Esvoaçam na água exatamente por terem um esqueleto cartilaginoso, alimentando-se de tudo o que existe no fundo do mar, desde crustáceos a plâncton ou peixes, pelo que os seus sucos detêm muito sabor concentrado. 

Uma grande raia pode medir até dois metros e surgem sobretudo em cardumes enormes no Inverno, na altura do equinócio, altura em que se aproximam mais na costa para procriar. É nesta altura que os pescadores aprovetam a sua incursão, pois na maior parte do ano estão confinadas ao fundo do mar.

Saborosa e versátil

Mas nem só destes encantos vive a raia. Para além de versátil na cozinha, é bastante saudável. Fonte de proteína, tem baixo teor de gordura. É ainda um peixe multifacetado a nível gastronómico. Pode ser degustada de muitas diversas maneiras: assada, cozida, escalfada, grelhada, frita, de tomatada, de alhada, em caldeiradas, sopas, massadas e guisados.

Do ponto de vista nutricional é rica em vitamina A, niacina, triptofano e minerais como fósforo, potássio e magnésio. Outra mais valia são as calorias. Por 100 gr., contém apenas 58 kcal., 14,1 gr. de proteína e apenas 0,2 gr. de gordura, pelo que o consumo deste peixe é permitido à vontade. Deve ser, obrigatoriamente, consumida no dia em que é pescada e apresentar cheiro neutro, a pele com pigmentação brihante e muco aquoso, carne firme e elástica, olhos brilhantes e salientes. O bordo das barbatanas deve ainda ser translúcido e encurvado e o abdómen branco e vivo, com zonas vermelhas em torno das barbatanas, já que, com a perda da frescura, estas ficarão amarelas e ganham muco.

As populações de raia encontram-se em regressão devido aos efeitos nocivos da pesca comercial excessiva. É, por isso, considerada uma espécie ameaçada, com o estatuto internacional de conservação e a chancela de “em perigo”, o que significa que corre risco muito elevado de extinção.

Esta sua vulnerabilidade tem determinado que a UE adopte medidas de gestão das pescarias e sua captura para menor impacto na espécie, adoptando um período de defeso durante o mês de Maio e Junho e um tamanho mínimo de captura de 52 cm. Para a próxima, não olhe de lado a raia na peixaria e experimente este pitéu. É simples de fazer em casa e agradavelmente surpreendente.