Os grandes brancos de 2019

Pela geografia, variações climáticas de terroirs e potencial genético de castas autóctones, Portugal reúne um assinalável conjunto de variáveis que lhe permitirá afirmar-se igualmente enquanto produtor de vinhos brancos de grande qualidade, podendo os 2019 demonstrá-lo inequivocamente.

 

O ano de 2019 foi particularmente bondoso para os vinhos brancos portugueses. À medida que os provo é difícil não lhes enaltecer a frescura, o equilíbrio e a profundidade generalizada que apresentam, sem diferenças abissais por entre as regiões. Nos próximos meses haverá certamente oportunidade de conhecer muitos mais vinhos dessa vindima, provavelmente com graus superiores de complexidade, o que me leva a arriscar um vaticínio – 2019 poderá afirmar-se como o grande ano de vinhos brancos portugueses da última década.


Os vinhos nacionais têm evoluído bastante, ainda que nem sempre à velocidade que desejaríamos porque, na loucura da voracidade do nosso tempo, queremos que tudo aconteça depressa, bem depressa e bem. Se há muito Portugal é reconhecido por elaborar dos melhores fortificados do mundo, desde meados de 90 tem convencido crítica e consumidores internacionais sobre a qualidade dos tintos, capazes de ombrear com qualquer outro exemplar dessa tipologia, de qualquer outro lugar. Mas, a grande (r)evolução a que assistimos nos últimos anos é no elevar dos vinhos brancos.


Deixou de fazer sentido ir de cabeça baixa ou discurso titubeante no momento da apresentação de um vinho branco português perante uma audiência internacional. Muitos obrigam a uma explicação acrescida, na medida em que é ilusório pensarmos que seremos reconhecidos pelos Chardonnay ou Sauvignon que elaborarmos. Precisamos trazer essas audiências à geografia portuguesa, presencial ou mentalmente, explicar-lhes a linha atlântica de fazer inveja que possuímos, as vinhas plantadas em locais demenciais em ilhas que estão no meio do oceano, as vinhas de montanha do interior, sem esquecer as cepas velhas e os vinhos de colheitas antigas que resistiram a tudo e hoje os glorificamos. Esqueçamos as castas que o mundo sabe de cor e centremo-nos nessa geografia e no exotismo de nomes quase impronunciáveis – algum americano pronuncia com rigor o nome das castas gregas, cujos vinhos brancos tanto têm dado que fala?


Pela geografia, pelas variações climáticas de terroirs e pelo potencial genético de castas autóctones, Portugal reúne um assinalável conjunto de variáveis que lhe permitirá afirmar-se igualmente enquanto produtor de vinhos brancos de grande qualidade, podendo os 2019 ser um relevante cartão de visita que o demonstra inequivocamente.

Acidez, sal e pimenta

Por estes tempos, quando falamos de um vinho branco, um descritor salta para a dianteira – acidez. Se um produtor da Borgonha a tenta controlar e até baixar ao mínimo indispensável, dado que os solos e o clima aportam uma acidez natural elevada, regiões bem mais quentes procuram-na como alguém sedento no deserto.


Cada casta produz naturalmente vários ácidos, sendo o ácido tartárico e o ácido málico os principais. Os vinhos (brancos e tintos) de climas mais frios e de solos de matriz calcária ou granítica têm tendência para serem mais acídulos. A acidez poder ser medida em pH e, no caso do vinho, habitualmente esse pH varia entre 3 e 4. Regra geral, quanto mais baixo for o pH maior será a acidez; no oposto, quanto mais alto for o pH mais rápida será a evolução oxidativa de um vinho.


Ao provarmos um vinho, se ficarmos a salivar bastante é sinal que a acidez será elevada. Se verificarmos que existem pequenas partículas que se assemelham a cristais na base da garrafa ou na parte de baixo da rolha de cortiça de um vinho que esteve no frigorífico durante várias horas ou mesmo dias, sim, é muito provável que a acidez desse vinho seja alta. Pelo contrário, um vinho com uma acidez menos pronunciada será mais redondo e mais sedoso.


Dependendo do vinho que é pretendido elaborar-se, na adega há alguns pozinhos e técnicas que permitem suavizar ou incrementar a acidez. A fermentação malotática, por exemplo, consiste em transformar os ácidos málicos (mais ácidos e severos) em láticos (mais suaves), fazendo com que o vinho fique menos agressivo, por ação do dióxido de carbono. Já o acrescento de ácido tartárico irá aumentar artificialmente o perfil de acidez natural de um vinho.
A acidez é das peças fundamentais que permite aos vinhos evoluírem bem, mas não deve ser nem endeusada nem destratada. Não queremos que um vinho seja monótono ou monocórdico, tal como não nos motivará um vinho apenas ácido e fresco, inócuo em aromas e sabores. Equilíbrio é sempre a palavra-chave de um vinho.


É esse o alerta que me parece prioritário nesta fase, em que os conhecimentos e técnicas de viticultura são incomparavelmente mais sólidos e em que a enologia finalmente domina a vinificação – sempre mais apurada nos brancos – na adega.
Que um vinho tranquilo açoriano, madeirense, de Lisboa, da Bairrada, de Setúbal, da Costa Vicentina ou do Algarve possua notas salinas evidentes de maresia, nada contra; que um vinho do Douro, de Trás-os-Montes, da Beira, do Tejo ou do interior alentejano também, sim, posso ter os meus fundamentos para o estranhar. Que um vinho de uma casta profundamente aromática passe a uma matriz de absoluta neutralidade, sim, pode levar-me a duvidar, mesmo que o argumento seja o da apanha mais precoce da uva para evitar aromas mais expressivos que surgem com a maturação.


Os vinhos brancos não podem perder o ADN simplesmente em nome de uma tendência mundial de consumo, muito menos pela busca de conceitos tantas vezes baralhados como acidez, mineralidade, salinidade. Nada contra a vinificação em cubas ovais de cimento, de argila ou outro material, aplaudo o uso ponderado de madeira, o resgate de barricas usadas e a aposta em barricas de maior dimensão, que marquem menos o vinho. Elogio a aposta em tonéis e em foudres para vinificar brancos, mas parece-me que merece ser questionada a neutralidade, por vezes até a aniquilação do perfil natural de castas. Um Alvarinho de Monção e Melgaço terá necessariamente de ser diferente de um Alvarinho do Alentejo, um Arinto de Bucelas terá que ser obrigatoriamente diferente de um Arinto dos Açores, o Maria Gomes da Bairrada terá um perfil distinto do Fernão Pires do Tejo.

Na perceção dessas diferenças estará a mais-valia dos vinhos brancos portugueses no mundo e até mesmo inter-regiões. O sentido de lugar, a geografia, o microclima, o solo e o subsolo estão em cada pé de vinha, não devem ser definidos pelo departamento comercial ou pelo enólogo. Os grandes vinhos brancos do mundo são os que reconhecidamente mostram a origem, os que não a mascaram. No momento em que se procura a expressão absoluta de um terroir, a expressão de uma casta numa micro-parcela de vinha, não faz lá muito sentido artificializar vinhos, transformando-os naquilo que não o são. Se quiser ter num copo um líquido incolor, praticamente inodoro, estupidamente salgado e de final apimentado não peço um vinho (encho um copo com água, junto-lhe umas pedras de sal e uns pós de pimenta, “et voilà!”). E, pessoalmente, sou dos que gostam de muita acidez e picante, imaginem se não o fosse…
 

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